24/01/2007

Fala da Divorciada da Secção de Embalagem - histª 52 do Anoitecer ao Tom Dela


Desenho: VIII, de Fernando Campos


1
Acordei a meio da noite com a ciência antecipada de um acontecimento fora da ordem dita natural das coisas. Assim foi. À contraluz da janela do quarto, vi um homem-silhueta sentado na cadeira em que, ao deitar, abandono a roupa como a uma pele excessiva. O homem não tinha peso, nem voz, nem razão. Tinha dois olhos que me olhavam, amarelos.

2
Juro que não senti terror. Não transpirei mais depressa. Também não falei. Olhei e deixei-me olhar. Comecei a sentir que o meu corpo planava numa espécie de saúde para lá do físico e do mental: uma harmonia alheia a este mundo de objectos que pesam e se avolumam. Uma espécie de felicidade.

3
Passei a receber o conhecimento das coisas sem ter de olhá-las. Por exemplo, senti que se tinha congelado o copo de água que sempre deposito à cabeceira para emergência de algum sonho no deserto. E que o vidro do copo se quebrara, restando apenas, em forma e potência, a água sólida. E que, se eu bebesse a água, ela me saberia a lamber uma estrela.

4
Aos pés, a gata dormia a inocência duplicada dos animais adormecidos. Na parede, os retratos das minhas filhas também eram sombras. E olhavam-me de olhos amarelos, também.

5
Não estranhei sequer minimamente a minha nova posição: de coração para baixo, as costas deitadas no tecto, a lâmpada no sítio em que as pernas abertas se tornam a letra V. O homem da cadeira olhava-me para cima. Os retratos, também.

6
O rectângulo da janela mudou para círculo. Mudou de lua para estrela, de estrela para água (daí talvez o sabor do copo), de água para cartaz publicitário, de cartaz para retrato de alguém que nunca conheci mas que eu poderia amar para sempre.

7
Em simultâneo, sem tempo dentro nem fora, fui o copo de água sem vidro, fui a cabeceira, fui as meninas fotografadas, fui todo o quarto, fui o avesso de todos os mortos que nunca nasceram. E fui aquilo com que a gata sonhava: uma árvore deitada ao sol como um lagarto com cara de rato.

8
A verdade é que mantive o emprego. Estou na secção de embalagem. O peixe congelado não cheira. É uma espécie de estatuária naturalista do mar. Gosto do meu trabalho porque não penso nele. Sou uma pessoa – não penso. Apenas embalo.

9
Trago pão e legumes para casa. Acendo a lareira com o auxílio de histórias de papel. O fósforo aumenta a escuridão como o farol aumenta o mar. O relógio acelera as horas e suspende os segundos. A Lua nasce em privado para cada janela de cada quarto.

10
Chamada pela brincadeira incontinente das crianças fotografadas, a gata acorreu ao quarto. Voltou furiosa para junto de mim. Soprou-me injúrias e bufou-me ameaças. Na cadeira da roupa, ela tinha cheirado o homem. E isso não pode ser, pensa ela.



Caramulo, tarde de 16 de Janeiro de 2007

7 comentários:

Anónimo disse...

Sublime. Senti um arrepio ao ler: e, claro, não o sei explicar. 20 vezes sublime. Esgotam-se as palavras, desculpa lá: leio todos os posts e nem sempre comento, porquê? Para o trivial, chega de vez em quando. O menos trivial fica por dentro; "Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever;
eu gabo-me daqueles que me foi dado ler" borges.

José Antunes Ribeiro disse...

Daniel,
Continuarei a ler-te por prazer, puro prazer da leitura...

Daniel Abrunheiro disse...

e eu fico feliz, sem umbigo, por vos ter como leitores.

Maria Carvalho disse...

São rosnadelas agora??!! Ok. Sublime. Como o Paulo diz. pareço estúpida de repente. E sou. Porque te leio e, às vezes, te percebo. Sublime. Só. Sem mais. Adorei.

Daniel Abrunheiro disse...

agora são rosnadelas, paula. na boa.

Anónimo disse...

Tb digo, como a Paula, rosnadelas? Ri a bom rir, cão.

Anónimo disse...

E digoa mais: isto são modos de tratar os comentaristas :) Cão duas vezes. Belo.

Canzoada Assaltante