Tarde, 4 do I
Dia todo de poalha de água. Sossego e bocejo. Todo o parque procede à receptação da massa pulverizada. Carros sem gente dentro, passando no ar, além-cortinas. Trabalho lento e certo. No telemóvel, algumas mensagens tardias de Ano Novo. Cigarros e chávenas de café. É este o tempo – todo ele. A poesia flui. Camilo Ardenas na cabeça: lento e incerto. Montalbán (depois Rilke, Pinter, Sófocles e Cervantes) – na mesinha-candeeiro da sala. Pulsação telegráfica ao escrever. O poder. Digo: o poder do caçador de pessoas. Duas páginas em branco do caderno velho: nelas vai nascer, crescer e jazer a história nova (*) para o programa de rádio, hoje (como sempre, é hoje). Sobrevoo. Um desenho de Fernando Campos para publicar na net. Certeza da vida. Recusa, pela literatura, da morte alheia: sua celebração frigorífica. Vigência vitalícia (desde que me lembro de mim) da palavra escrita. Sua maravilha e sua autoridade. Ou seja: dela (por ela, com ela, em ela), outro mundo e outra vida que não apenas esta e este. Um amigo ao telefone: “Pois, o teu trabalho não dá para comprar mercedes.” Certo, pois não. Dá para escrever – mercedes, mercedes, mercedes, mercedes: quantos quiser. E a bordo deles colocar gente. Ou não colocar, escrevendo, como supra, “carros sem gente dentro, passando no ar, além-cortinas”.
(*) Acabou por ser "Dez Silhuetas a Lápis nº 2".
Caramulo, tarde de 4 de Janeiro de 2007
1 comentário:
Prefiro ler-te a escrever mercedes biliões de vezes do que ter um sem nada dentro!! Bolas!
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