05/01/2007

Dez Silhuetas a Lápis nº 2 - histª 47 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Um homem chamado Vicente Célio Manteigas gostava de estar na ponte de madeira olhando o ribeiro. A água desenrolava para ele um espelho rápido. A silhueta de Vicente tremia como uma chama de vela ou uma estrela. Eram pedregosas, as ribas do rio. O arvoredo demorava um pouco a começar. Pássaros pequenos disparavam rápidos. Aves grandes circulavam lentas contornando invisíveis moedas.

2
A silhueta da senhora mexicana que, talvez no ano 1970, foi esmagada por um trólei que passava em frente no exacto momento da explosão da botija de gás do Café Sofia, em Coimbra. A montra estilhaçada no alcatrão: mortíferos diamantes. Eu suspenso dos braços do Rui e do Jorge para que me não cortassem os diamantes. A arca dos gelados virada, o bando de rapazes-andorinhas das ruas pobres da Baixinha que rapinaram os gelados todos. O sangue mexicano da silhueta.

3
A silhueta do Armandinho, louco manso de Coimbra de andar estropiado por uma configuração óssea de mola-da-roupa. As barbas dele, à século XIX, densas como um arbusto psicótico, fulminando o ar das crianças: eu, uma delas.

4
O perfil de pardal azul da rapariga que descia no apeadeiro da Abrunheira, todas as santas tardes. Nunca mais a vi – pelo que me é lícito supor que continua apeando-se do mesmo comboio com a mesma idade e o mesmo desenho e a mesma falta de peso.

5
Em Lisboa, de botas negras por fora do cano das calças cor-de-marfim, a rapariga chamada Helena Julho, cujo andar desdobrava um farfalhar de papel – de ser tão bela como uma capa de revista. Alta, de ombros perfeitos como pratos de balança António Pessoa.

6
Maria Luísa, a cabo-verdiana de riso cantor, na madrugada odorífera da Reboleira, entre peixes azuis e homens verdes. Boca sumarenta como um congresso de pêssegos. Barriga ondulada de duna carnal. Os meninos pobres da Reboleira todos na rua ao mesmo tempo, ansiando por explosões e arcas de gelados.

7
Júlia, senhora e costureira, pespontando panos roxos na tarde vitalícia da minha infância. Ovos de pata e sandes de fiambre. Chá preto e mexericos inócuos. A saúde dos meninos. O desastre mortal do vizinho que tinha um NSU. Os países do mapa-múndi por ordem alfabética. Alfabeto: minha única ordenação do mundo.

8
O pedinte de barbas brancas que não pedia, antes propunha um calendário litúrgico pelo que a senhora quiser dar. Se fosse o meu Pai a ir à porta, recebia mais. De modo que no Janeiro seguinte – e para sempre menos hoje – passou a bater à porta da oficina, sem que minha Mãe topasse.

9
A figura do homem que à mesma porta da mesma casa trazia para venda um livro chamado “A Saúde pelos Alimentos”. A mesma figura e o mesmo homem comendo nozes debaixo dos cedros do Picoto, nessa infância-Ponderosa que vivi de lápis nº 2 na mão.

10
A última silhueta é a do rapagão descendo a rua Alexandre Herculano. Em baixo, a Praça da República fervilha de pessoas de esplanada. Um golpe de ombro à direita e pronto: silhueta na rua Antero de Quental. Entretanto, entre tantas tão poucas coisas-de-nada-coisa-nenhuma, a senhora mexicana acaba de dar uma moeda ao Armandinho. Em torno da moeda, aves grandes.


Caramulo, tarde de 4 de Janeiro de 2007

1 comentário:

Maria Carvalho disse...

Gostei das 10 silhuetas em lápis nº2. Aliás era esse que tínhamos que utilizar. Para mim de pouco me serviu, porque não sei desenhar a lápis...muito menos escrever!

Canzoada Assaltante