1
Às vezes, a chuva apresenta-se ao mundo com uma intensidade de água a ferver. Nessas ocasiões, torna-se difícil segurar as coordenadas da realidade. Um rio caindo de cima torna-nos horizontais as almas. A terra sobe de lado. E a memória impõe-nos a ficção dos sentimentos. De todos os sentimentos.
2
O consultório do dentista é num primeiro andar de pé alto. Uma rosa de estuque olha do tecto para baixo. As janelas são altas e estreitas. São de vidro com bolhas e caixilhos lacados de branco. Subo ao dentista, digo uma graça à senhora das marcações e sento-me na cadeira mecânica. Abro a boca sem ser para falar. Respondo-lhe com os olhos.
3
O dentista escava-me o coração pelas raízes. Gosta de falar de política. Eu ouço-o num torpor de novocaína. Com um olho de peixe, verifico a chuva nas janelas: é um cinematógrafo sem actores e sem plateia: uma coisa para além da gente.
4
À saída, mordo o algodão com as gengivas dormentes de groselha. Derivo entre as vielas comerciais e as margens mentais da precipitação. Com os dedos em cautelosa tenaz, removo do coração a bola de groselha. Enxugo o lábio congelado pela anestesia com um lenço de papel. Tenho fome e não posso comer. Tenho saudades e não devo lembrar.
5
Na rotação dos anos, o pensamento forja como um ferreiro. Tardes decorrem de domingos. O tempo recomenda, lá de fora, a cozedura lenta de enxúndia de galo, o recurso ao pão torrado com manteiga de alho e o uso do vinho encorpado e honesto dos cavadores que abominam a aguardente vínica. Vou dando os dentes ao dentista e o casaco à chuva.
6
As casas resistem poucos séculos ao capricho pluvial de Deus. E as pessoas resistem menos do que as casas. Areias e despojos de Outono acumulam-se nas valetas e nos interstícios do corpo que a realidade opõe à realidade. Trata-se de uma luta, também ela, sem actores e sem plateia.
7
O dentista que concorro, se pudesse, arrancaria todos os dentes a todos os políticos. Deixá-los-ia a mastigar em seco. A engolir cuspo. Ele gosta de política, mas não de políticos. Tem pelos senhores de Lisboa um ódio amável e fiel, constante e esclarecido. O meu dentista tem poucos clientes. A terra é pequena. A chuva é grande.
8
Uma vez, quando eu tinha todos os dentes na boca e não no copo da cabeceira, aconteceu uma tarde que depositava do alto azul um veludo de puro ouro esbracejador de pássaros e aviões a jacto. Era um mundo de aventuras. Amantes francesas sacavam segredos telegráficos a coronéis nazis. Choviam bombas. O senhor da mercearia era vivo.
9
A camionagem já adaptou horários e preçários ao século XXI. Os pescadores de coral da ilha de Maui alugam videocassetes da Antártida. Mulheres abandonadas cozinham para fora empadas de massa tenra com galinha guisada. Lá em baixo, no vale entre serras, as crianças escorrem água do céu das botas de borracha.
10
Um dia, no entanto, tudo volta a ser lume. Nas camas, os corpos fervem de uma ansiedade aprendida na televisão, não no raciocínio. Encalmados, os gatos desdobram-se como acordeões de pêlo. O dentista encosta as portadas das janelas. Eu entro na farmácia. Os anos seguem em rotação.
Às vezes, a chuva apresenta-se ao mundo com uma intensidade de água a ferver. Nessas ocasiões, torna-se difícil segurar as coordenadas da realidade. Um rio caindo de cima torna-nos horizontais as almas. A terra sobe de lado. E a memória impõe-nos a ficção dos sentimentos. De todos os sentimentos.
2
O consultório do dentista é num primeiro andar de pé alto. Uma rosa de estuque olha do tecto para baixo. As janelas são altas e estreitas. São de vidro com bolhas e caixilhos lacados de branco. Subo ao dentista, digo uma graça à senhora das marcações e sento-me na cadeira mecânica. Abro a boca sem ser para falar. Respondo-lhe com os olhos.
3
O dentista escava-me o coração pelas raízes. Gosta de falar de política. Eu ouço-o num torpor de novocaína. Com um olho de peixe, verifico a chuva nas janelas: é um cinematógrafo sem actores e sem plateia: uma coisa para além da gente.
4
À saída, mordo o algodão com as gengivas dormentes de groselha. Derivo entre as vielas comerciais e as margens mentais da precipitação. Com os dedos em cautelosa tenaz, removo do coração a bola de groselha. Enxugo o lábio congelado pela anestesia com um lenço de papel. Tenho fome e não posso comer. Tenho saudades e não devo lembrar.
5
Na rotação dos anos, o pensamento forja como um ferreiro. Tardes decorrem de domingos. O tempo recomenda, lá de fora, a cozedura lenta de enxúndia de galo, o recurso ao pão torrado com manteiga de alho e o uso do vinho encorpado e honesto dos cavadores que abominam a aguardente vínica. Vou dando os dentes ao dentista e o casaco à chuva.
6
As casas resistem poucos séculos ao capricho pluvial de Deus. E as pessoas resistem menos do que as casas. Areias e despojos de Outono acumulam-se nas valetas e nos interstícios do corpo que a realidade opõe à realidade. Trata-se de uma luta, também ela, sem actores e sem plateia.
7
O dentista que concorro, se pudesse, arrancaria todos os dentes a todos os políticos. Deixá-los-ia a mastigar em seco. A engolir cuspo. Ele gosta de política, mas não de políticos. Tem pelos senhores de Lisboa um ódio amável e fiel, constante e esclarecido. O meu dentista tem poucos clientes. A terra é pequena. A chuva é grande.
8
Uma vez, quando eu tinha todos os dentes na boca e não no copo da cabeceira, aconteceu uma tarde que depositava do alto azul um veludo de puro ouro esbracejador de pássaros e aviões a jacto. Era um mundo de aventuras. Amantes francesas sacavam segredos telegráficos a coronéis nazis. Choviam bombas. O senhor da mercearia era vivo.
9
A camionagem já adaptou horários e preçários ao século XXI. Os pescadores de coral da ilha de Maui alugam videocassetes da Antártida. Mulheres abandonadas cozinham para fora empadas de massa tenra com galinha guisada. Lá em baixo, no vale entre serras, as crianças escorrem água do céu das botas de borracha.
10
Um dia, no entanto, tudo volta a ser lume. Nas camas, os corpos fervem de uma ansiedade aprendida na televisão, não no raciocínio. Encalmados, os gatos desdobram-se como acordeões de pêlo. O dentista encosta as portadas das janelas. Eu entro na farmácia. Os anos seguem em rotação.
Caramulo, tarde de 8 de Janeiro de 2007
4 comentários:
o meu desejo é imitação de outro. poderá ser?
pode, acho.
Lume e cinzas, cara e coroa da mesma moeda. Beijinhos
'Os anos seguem em rotação'. Uma imagem linda. Nunca tinha pensado assim.
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