22/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 499 a 501

© DA.


499

Segunda-feira,
21 de Junho de 2021

    Isto é uma tralha de papéis que o Tempo amarfanh’amarelou, usando para tal o meu corpo. Quase todas a lápis, sem contexto, as anotações semelham interjeições bradadas por esses barbudos fala-sós que pelas ruas ameaçam um apocalipse que tarda a chegar. Uma delas: 5.ª-F.ª, 22/3, 2.º, Enf.ª 9, cama 77 (ou 37?). E ao lado a cabeça de um boneco mal desenhada. Outro rasgado só com o seguinte: o casalito de rôlas veio & partiu antes do gaio. Outro caco de papel enumera onomásticas de heteróclita justaposição: killer Henry H. Holmes / Richard Speck / Robert Buller falhado killer de Debbie + Krista Harrison / Joly Braga Santos / Abel Salazar / Amália Rodrigues / José Rodrigues Miguéis / Romeu Correia / Baptista Pereira (o filho era Tito) / Aristides de Sousa Mendes / Freitas Branco. Outra cabeça de boneco desenhada sem talento. Mais duas destas. Outra surge mais trabalhada mas idem extravagante: 70 / Manson / Zodiac / Hillside Strangler / Keneth / Bianchi? / Angelo Bruno? / Dean Corll / J. Wayne Gacy / Gary Gilmore / Lynette Alice Fromme “Squeaky” / Gerald Ford / Sara Jane Moore / Son of Sam / palhaço Geraldo Rivera / People’s Temple / Jim Jones (cong. Leo Ryan) / Bundy / arre(n)dar / Millroy usa óculos, cabelo penteado a língua de vaca / L(J?)edburgh nem uma nem outra coisa / Virginia e as Carolinas / Boston de Blatty / Craven / TJS Sports Football Season Review / 1970-71 / 1971-72 / 1972-73 / 1973-74 Leeds champ. Liverpool cup / época victoriana / cantor Conway Twitty (Family Guy) / ZONA IND. PEDRULHA CINTURA MONTE/CAMPO. Segue-se (mas sem indicação de fonte bibliográfica) um fragmento de Alexandre Herculano, de que respigo:

    “ – É a entrada nobre para a quinta.
    A entrada nobre. Eu deito a vista.”

500

    Assaltaram um carro aqui na rua. Partiram o vidro do condutor, forçaram o canhão da ignição, acabaram por desaparecer com as mãos cheias de frio, espero que cortadas também. A polícia veio, chegou & fez como eu: tomou nota da ocorrência.
    Nos meus mais recentes 57 anos, foi este um dos mais aventurosos & palpitantes casos em que me vi envolvido. Bond. James Bond. Idemuno. Parnada Idemuno.

501

    Norberto Abílio Leandro Abel, vejo-o ainda com equívoca nitidez sempre que, à face do solstício da solidão, me dá jeito ver alguém. Coxeava como um soldado medalhado, seguia mais vezes de bicicleta pela mão do que montado nela, teria então uma fabulosa legendária mítica matusalémia idade superior a sessenta anos – quando eu, aos quatro, começava a ser escritor de sentenças bruscamente interrompidas, a que hoje chamo versos.
    Era gentil, ameninava-nos com cortesias de adulto. Habitava uma barraca sórdida, espécie de materialização com janelas de um aterro-municipal. Tinha talvez – nunca menos de – vinte filhos, alguns dos quais tinham cometido a insensatez de nascerem raparigas.
    O trabalho dele era fonte de rumores soprados expressamente no intuito de adensar o mistério. Uns, que andava ao papelão e às garrafas para vender nas fábricas; outros, que dormia com a cabeça de sentinela a uma caixa de ébano no interior da que obscuramente cintilavam libras de oiro com que se pagava o pré aos soldados ingleses que nos vieram safar da horda napoleónica; eu, eu desconheço que fazia ou faria ele durante o dia. Saía, bicicleta pela mão, de madrugada, regressando a seu palácio confuso pelas violetas do entardenoitecer. Não era um bêbedo. Não praguejava nem blasfemava. Julgo que o confundia o facto de ter nascido. 
    Tal hipótese faz-me sorrir & consola-me, pois que, a ser vera, Norberto Abílio Leandro Abel não estava afinal tão desarmado nem tão só à face de um certo solstício que, já desde os quatro anos de idade, julguei apenas meu, tão-só meu & de ninguém mais que meu.

2 comentários:

Patrícia Cardoso disse...

Trouxe-me até ti uma palavra.
Que mais poderia ser?!...
Se te contasse qual fartavas-te de rir.
Eu dela já me não rio, e espero muito lavar-me a tempo.

Porra, Sr. Cão!!!
Daniel. Danífio. Canífeo. Muito pode a Grand’Arte!
Que ricobelo(s) texto-experiência
Que confusão, o facto de ter nascido
Que importante utilidade os mortos terem tido
E os que ainda não, um dia serão.
Patrícia Daniel Cardoso Abrunheiro
Justificada ausência um dia também
Empalhadas vizinhas vidas amigas além.

Um dia a noite acontece e o lápis cai
Lavemo-nos todos antes que depois não sai.

Um beijo, meu amigo, que importância tem.
PC

Daniel Abrunheiro disse...

Amiga PC, muito bom dia.
Quão gentil és. Fazes-me começar bem o dia, assim gratificado.
Tens de dizer-me qual a palavra que aqui te trouxe pela mão.
Saúde melhor do mundo para ti & teus.
DA

Canzoada Assaltante