30/09/2009
AVES COMETENDO O ANIL E DEMAIS VIAS-FÉRREAS - 3
29/09/2009
28/09/2009
AVES COMETENDO O ANIL E DEMAIS VIAS-FÉRREAS - 5
26/09/2009
Por ter estado todo o sábado em reflexão, amanhã vou dizer-lhes, votando,
24/09/2009
Rosário Breve nº 122 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt
Junqueirada
Um ser irrelevante do partido a que por graça chamam “socialista” comparou o discurso de Manuela Ferreira Leite ao de Salazar. A comparação brotou de um tal Junqueiro, Zé para os amigos.
Os junqueiros deste mundo são aqueles fatos-gravatas que aparecem sempre atrás do figurão ao microfone nas arruadas de sorteio-de-cegos das campanhas. Sempre os comparei à caspa: branquinhos, desagradáveis à vista e eternamente aos ombros de alguém.
As junqueiradas dos junqueiros fazem parte do circo dito “democrático”. São boas para sacudir com uma escova. Mas devem ser vituperadas sempre que dão de si.
O discurso de Manuela Ferreira Leite vale o (pouco) que vale. A senhora não tem culpa de ser desengraçada. Não é fácil apanhá-la a fumar em aviões ou a suar t-shirts em maratonas parolas de galga-pontes. Se calhar, está casada com o mesmo homem há mais de quinze dias. Não sei. Não quero saber. Mas não a acho salazarenta. Acho-a hirta, isso sim. É provável que nunca tenha lido Ruy Belo nem Bernardo Santareno. É capaz de, como Salazar, não ganhar eleições algumas. Mas daí a fascizá-la sem mais nem menos, não.
Os junqueiros deste mundo, é para isto que servem. Umas atoardas malévolas aqui e ali, um coparete de verdasco com o bigodes do acordeão e pronto: uma carreira de “serviço público” feita.
A parda eminência de Santa Comba Dão não era muito dada a junqueiros, valha a verdade. Com ele, a galeria era mais de padres-cruzes de pagela bentinha, eusébios de tiracolo colonial, criancinhas anémicas de colónia balnear e exposições de nun’álvares de papelão. Até que o caruncho lhe roeu a corda e a cadeira.
Uma coisa má do 25 de Abril é este florilégio de junqueiros e junqueiradas. A irrelevância, até moral, destes fracos fraques de bolo-de-noiva nunca me faz sorrir. Faz-me só pena. Pena que o caruncho não continue ao serviço e a Bem da Nação.
19/09/2009
18/09/2009
Rosário Breve nº 121 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt
Castanhos e tristes
Toda a gente nasce zé-manel, mas nem toda chega a durão-barroso. Pelo inverso, e a demonstrá-lo sem apelo mas com agravo, por toda a parte e a qualquer momento se tropeça num qualquer mário-soares que acabou joão-idem. As onomásticas colectivas confirmam, por regra, as degenerescências heráldicas. Repare-se, para o efeito como para o defeito, em quantos bragança-bourbon-hohenzollern foi preciso gastar para produzir um único nuno-da-câmara-pereira.
Crónicas familiares revelam que o meu Avô paterno, que se chamou José e era portador de uns lendários olhos azuis, era especialista em enxertia de árvores de fruto. Punha laranjeiras a dar limões que era um mimo. E punha a minha Avó J’aquina a dar filhos que era outro mimo. Das artes de meu Avô Abrunheiro, só conservo o apelido. Sinal da vulgarização irremediável que o meu nascimento trouxe à árvore do nome é o castanho-pardal dos olhos com que dou a cara às tristezas do mundo. Ora, se eu soubesse pôr rainhas-santas a dar rosas como ele obrigava pessegueiros a dar damascos, decerto que outro galo me cantaria as manhãs. E tal seria também, ao menos para mim, outro mimo. Mas não sei. Paciência.
José Manuel Durão Barroso mais cinco anos igual a quantos ou a quê? Não sei. Vós sabeis? Quereis saber? É-vos igual ao litro? Desemprego. Envelhecimento. Criminalidade. Formação. Habitação. Litro? Meio litro? Quartilho? Decilitro? Copo-de-três? Em que ficamos?
Durão Barroso teve artes próprias para, de um nevoento maoísmo dos 19 anos, chegar a um eurofederalismo de madura idade. O cherne fez-se barão, primeiro, e tubarão, depois e agora.
Nós por cá, sabemos que os milagres se não invertem. Isto é, que (os) rosas não dão pão.
Mas qualquer zé-manel sabe que só um porfiado sermão aos peixes livra o tubarão de ser cherne toda a vida.
17/09/2009
AVES COMETENDO O ANIL E DEMAIS VIAS-FÉRREAS - 4
4
Pombal, entardenoitecer de 16 de Setembro de 2009
O vento do entardenoitecer torna a respiração uma questão, ou função, de maresia. O vento do entardenoitecer é um dos meus países provisórios favoritos. A vida espraia-se e solidariza-se: o ar móvel acomete os corpos de uma euforia mansa, fusão a que sou muito dado desde que pratico o meu sempre.
O vento do entardenoitecer traz-me sempre muito a pena de não vivermos todos tudo para sempre. Não sei se estais a perceber-me: o vento do entardenoitecer vem do lado da pena de viver.
Eu sei: o melhor é ser prático, fazer por viver em paz sem receber mensagens, deixar viver em paz sem reenviar mensagens, aceitar o instante sem pensar o instante, a hora, a exploração aurífera da manhã - e o vento do entardenoitecer.
O que vem no vento do entardenoitecer?
No vento do entardenoitecer vêm
Alguns mortos (não todos, os vivos só);
Linhas de casas traçadas por crianças (de qualquer idade: crianças e casas e os gestos que traçam);
Parar de máquinas cansadas como pessoas, como animais;
Fragmentos de inquéritos;
Asas secas;
Oportunidades esquecidas;
Sombras de relâmpagos, de ondas, de desejos, de azulejos;
Aspirações lentes;
O sabor do damasco;
O sabor da injúria;
Cartas urgentes de um século que deixou de o ser;
Gatos alheios;
Cacos de discursos gravados em mármore;
Farrapos menos antigos do que as pessoas que os perderam;
Prospectos de astrólogos, de lavandarias a seco, de actas relativas à vida quotidiana no Antigo Egipto, de facturas com refeições discriminadas por pratos que foram servidos e estações do ano em que foram tomadas.
14/09/2009
AVES COMETENDO O ANIL E DEMAIS VIAS-FÉRREAS - 2
2
Bairro da Agorreta, Pombal, depois Pombal, manhã e tarde de 14 de Setembro de 2009
(fotografia também, manhã)
A montra do café de fumadores tem afixada uma folha de papel com um desenho que representa um caracol. Acima do animal gráfico, a indicação verbal Há. Poderia ser Ceci N’Est Pas Un Escargot. Mas não, é Há.
Bela manhã parda. Não fria e ainda não quente. Junto a uma grade pintada de azul-forte, uma mulher de blusa branca com um telemóvel cor-de-madrepérola agarrado ao hemisfério esquerdo da cara. Além, um rosto bonito com chávena de café à boca. Pena a adulteração a tinta (madeixas) do cromo capilar natural. Mas boa blusa verde, boa calça branca, boas e finas sandálias de ouro enredando os pés morenos.
Consciência da entrada dos anos no meu funcionamento erógeno. Digo: mais e mais remota a vaga luxúria da juventude, mais e mais rarefeito o apelo erótico das senhoras do mundo. Em lugar dessa inquietação já antiga, a moderna fruição estética delas. Parecem-me, as senhoras do mundo, artefactos de cerâmica, algumas. Corpos bonitos tocados de uma graça só já vegetal a meus olhos, animal já não. Não desgosto de todo desta tranquilidade mirone de escritorzito.
O meu peso na Terra. As contas na cabeça. A fluidez das mãos (como limos na água corrente). O perfume a aves assadas nas lojas de pronto-a-comer. A inauguração do ano lectivo. A cabeleira larga e profund’alta destes plátanos. A passagem das viaturas com a firma escrita nos flancos da chapa. Este tempo que tem(p)os para ser – e de estar.
Aquele senhor também mandou pintar o cabelo, coitado. Parece um fósforo. É um velho pintado. Em vez da prata natural, aquela ferrugem de lata de conserva. Colete de pescador ou repórter. Sapatinho barato. Pantalões de anacrónica ganga: um engatatão de nenhuma, coitado. Lá vai ele à vida dele, ilusório moço por dentro e fósforo por fora.
Leitura do jornal do dia por quase uma hora. Um idiota pago no televisor babuja insolências geriátricas cheiinhas de boa-vontade-feliz-natal-em-setembro. Minha vida a que pertenço. Uma romã: relojoaria de rubis. APOIA O BTT – apela um dorsal de camisola em corpo de operário (bolo de bacalhau, taça de tinto de cooperativa).
Sou este gajo, a minha intenção é escrever tudo. (Sim, conheço o malogro: so what?) Compreendi (apre(e)ndi, portanto) algumas coisas. O nascimento e a defunção. A passagem até da passagem. A rarefacção do oxigénio nas montanhas emocionais. O milagre portátil da poesia. A pintura móvel dos lances do mundo: a ponte que demonstra o rio (e por igual a necessidade de atravessar), a loja de óptica, os últimos moicanos da agricultura (carroças puxadas a burro em plena fila de semáforos), um amigo muito doente no hospital, outro amigo muito doente mas em casa (à espera, claro, ele sabe), um carro preto silencioso como um sedativo nas costas da alma, um relógio de parede marca Delta com o retrato de Camões (Celui-ci N’Est Pas Camões) feito a grãos tic de café tac, o verde franco-escocês de umas telhas lembradas talvez de Chesterton (G. K.), um laboratório de prótese dentária que fabrica sorrisos alternativos à podridão das cremalheiras, o combate da consciência a si mesma para que o sofrimento não emane alguma fragrância mortal, um avô & um neto em parceria indestrutível pela rua, o avô de saco plástico, o menino de chupeta verde na boca de morango, adiante na minha vida o outonecer das coisas, em casa as fotografias olhando de lá do Tempo o cá da Vida, se for a solidão o mais companheiro barco, ali uma escola viva por dentro como uma colmeia, Há Caracol, uma velhota de sapatos de papel-de-jornal que enlouqueceu em 1968 por causa de o filho ter sido rebentado em Angola por uma mina anti-filhos, a contemporaneidade dor/amor/indiferença/memória/esperança/pintura/ponte, a rapariga que sonha ser cantora pimba em pavilhões-atlânticos de associação local cujas retretes cheiram a merda de tractor, a pança maravilhosa daquele homem, carvoeiro e madeireiro de ofício, a imparabilidade na minha cabeça de tantas letras, tantos riscos, tanto mundo completamente silábico.
Perto do meio-dia, a rosa solar rompe o cartão nublado.
Antigamente íamos ver o mar e o mar via-nos. Agora não somos vistos por ele, que nos não perdoa termo-nos tornado isto: adultos sem inocência.
Na zona da vi(d)a-rápida, vendo passar os carros levadores da vida que passa. Um cão branco, veterano, de lombo ligeiramente arruivado. O sossego das vivendas na banda d’além. Com um pouco de sol (acontece-me muito isto) olho o azul d’além e desejo o mar. A realidade é toda, porém, estes camiões carregados de blocos de cimento, estas árvores de fruto empoeiradas como largos de praça depois do padre e da filarmónica e do Verão, estes papelitos perdidos pelo chão, os grandes placards das oficin’autos. Olha: a manhã acaba-se, saciada de si mesma. Um gânglio anti-infeccioso no estojo da mandíbula, lado esquerdo. Uma rapariga já descriada de camisola em amarelo-forte. Sapatas brancas com incrustações de cobre. Coração nalgal ainda firme, corrido duplamente a sul pela gelha das barrigas das coxas. Lá vai ela à vida dela. Ela é do nosso tempo: contemporânea desta merda toda. Fotografei aspectos da cidade. Dei umas voltas pelo silêncio povoado de gente de gesso, coitada. A precisão vital da dignidade. O comércio de vitualhas, ferragens, nastros, nardos, narcejas, bandejas, molduras, braceletes, lenha, carvão, óculos. Tanto ouro, tanta prata, tanto papel-de-jornal. Eu queria o mar. Um pouco de tempo ao pé do mar. Passa porém uma carrinha de reparações eléctricas com um busto de boné e óculos ao volante. Se não for pelo mar, quero deixar escrita alguma marca. Pinceladas quase enxutas marcam quatro copas de talvez amieiros. Não sei se no horizonte, se na cabeça – dá o mesmo em sílabas. Rumor de louças e facas e mulheres em antros húmidos: vão nascer os almoços do mundo. Eu vou ali e depois eu ainda não sei muito, algumas coisas sim.
Relíquias vivas, as palavras de cada dia. Também: povoadoras nocturnas: mariposas, lunações apre(e)ndidas ao Sol. As nossas vidas, outros tantos papéis-de-seda(-de-jornal-a-verdade-é-que-de-jornal). Flores da eternidade sucinta de uma manhã, toda a vida. Que as glândulas deste Avô o suportem um par de anos mais para dar a conhecer-se ao Neto pequenito, chupeta verde na boca de morango. Inocência ainda ante o mar (uma sílaba: mar).
Um olhar onde possível com frescura.
Nunca desistir: nem dos versos, nem dos bustos, nem dos cães dourados (ruivos, porém) que passam vivos a manhã, Ceci N’Est Pas Le Matin Non Plus.
13/09/2009
AVES COMETENDO O ANIL E DEMAIS VIAS-FÉRREAS - 1
1
Souto, Casa, tarde de 13 de Setembro de 2009
Pensava eu aqui com os meus botões sobre a improbabilidade de deixar marca nisto a que chamamos Realidade. Na medida do possível, flutuei como um pavimento. Os botões também flutuaram, suponho. Pensei no cinema disto tudo. Na mentira própria e mesma do mesmo corpo próprio a que um de nós chama Eu. Vi as aves cometendo o anil com delas a roupa preta. Vi o mar do Baleal encontrando-se na luz por ele segregada, mesma e mesmo. O mundo tão povoado de portões. O problema das emoções cegas. A idade de uma pessoa. Uma pessoa ser um homem. Um homem ter sido menino apenas quando não havia portões do mundo. Os portões serem cegos como as emoções. E os anos pingando cera como horas gota a pingo a gota a cera, anos: fósforos. As pessoas que ainda entristecem (e as que não) em pátios e pelas ruas. As que se perderam na volta dos cigarros. Os cavalos dos ciganos, os circos de vila em aldeia, a angústia muito poderosa dos natais. O facto de haver registos: óbitos, hábitos, nascimentos, temáticas, sincretismos, sotias. Por mim (um de Nós, portanto), tão-só a fixação das regras essenciais. Deus e chávena: possíveis e improváveis, Um como a outra. O Pavia e o Arunca, o Tejo e o Mondego: veias abertas de suicídio nenhum, antes pelo contrário. O ter perdido alguma coisa durante isto que ao resto disto condiciona. Passeios meditabundos desde criança: prova e provação. Mas ainda posso: o que for: o tempo é algum, ainda. Planos cinemáticos, paisagísticos, de logística de transportes, de manutenção de víveres e de produção de versos – são como Deus e são como as chávenas. Um de nós há-de ser real. E a realidade é férrea. E os portões são férreos – e o que era para ter sido lácteo, já foi.
Pátios varridos a revoadas fulvas: outonos que varrem gerações de crianças, gerações de crianças e de cães e de gatos e de vizinhos e de marcas de carros, tudo caído em desuso por força de tanto entretanto. Voltas, ainda assim, maravilhosas: quando a cabeça entende o que algo deveras é: uma coisa como um pássaro ou uma atitude ou uma epígrafe ou uma bondade ou uma data.
E uma linha de verdade possível e improvável – por aí, anil, preta.
Na Zona Industrial da Formiga, Pombal, Me Encontrei, Adusto, em Narração
Rosário Breve nº 120 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt
Quanto mais me debates
A Democracia transforma as nações em queijo para que as pessoas tenham toda a liberdade de votar nos ratos.
Civilizacionalmente falando, foi inventada ainda não tinha Cristo certidão de nascimento. Foram os Gregos os pais dela. Sabe-se hoje que a inventaram há 26 séculos, os helénicos ratões, só para virem cá ganhar, à segunda volta, o Euro 2004 das bandeirinhas luso-brasileiras. Pronto, agora chega de cultura e de profundidade, vamos aos debates.
Os debates são como os jogos de matraquilhos: em ambiente de feira popular (há bifanas, há torrão-de-alicante, olha o poço-da-morte) dois gajos, um de cada lado, a fazer o que querem dos bonecos. Em Democracia, fazemos de bonecos. E fazemo-lo com um certo entusiasmo, mesmo sem braços. Acontece que eu-pessoalmente-penso-de-que estes debates não interessam derivadó-facto de é-assim: enqueijam-me. Ainda se os matrecos fossem com outros gajos, vá lá. Q’ais outros? Eu digo.
Liedson contra Sousa Tavares, tema O Acordo Ortográfico. João Baião contra Manuel Luís Goucha, tema A Soraia Chaves. Manuela Moura Guedes contra a Princesa Letizia, tema A Jangada de Pedra. António Lobo Antunes contra Alfred Nobel, tema António Lobo Antunes. Miguel Relvas contra Pacheco Pereira, tema A Lista de Schindler. E Alberto João Jardim contra Hugo Chávez, tema A Democracia. Assim é que era. Era ou não era? Ideia maravilhosa para acabar: no fim de cada debate, passavam desenhos animados como antigamente o Jorge Alves e o Vasco Granja. Como aquilo da Democracia é queijo para ratos etc., no fim de cada matraquilhada passavam o Mickey. E os Patetas votavam nele, como sempre fizeram e sempre hão-de fazer.
Humiaunidade
Souto, Casa, 13 de Setembro de 2009
Parece que todas as pessoas são só uma – e uma só de cada vez.
Por assim dizer, reproduzem o ser dos gatos – um só é todos.
Permanece a questão de apenas uma pessoa por pessoa.
O amor e a dor reproduzem-nas – nisso parecem repetir-se.
A questão permanece de todas serem um gato, por assim dizer.
E como ele todas sós.
09/09/2009
Senhoras, Areia, Crianças e Estorninhos
A NOITE EM BREVE ou CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS (uma portugalidade delével) - 20
Coimbra Antiga, Nora no Choupal
20
Caramulo, tarde de 5 de Setembro de 2007
Ontem e hoje, dois dias ao mesmo tempo exaustivos e exaustores. Fiz-me à estrada, fui a Antuzede buscar o resto da minha biblioteca. Recebi a preciosa ajuda do meu irmão Fernando (que hoje, 5 de Setembro, completa sozinho 53 anos de vida; digo sozinho porque ele foi gémeo, outrora; ainda o é, aliás, de uma maneira dele que só ele sabe).
Milhares de títulos esperam povoar em ordem as estantes novas, que são insuficientes. Tenho muita coisa boa, assim como, enfim, acumulei muita porcariazinha, grâce Dieu: uma biblioteca é uma vida. É um cansaço delicioso e humaníssimo, recompor em casa própria a acumulação de uma vida. Lá estava a minha Maria Alberta Meneres d’O Poeta Faz-se aos 10 Anos. E o Caldwell numa ponta, em cima, mais o Updike na outra, em baixo. A senhora Yourcenar. O Gogol. O Kawabata. O Pasolini entant qu’écrivain. Osvaldo Soriano, falecido não há muito. Messieurs Voltaire, Lautréamont, Gide et Barthes. O grande (enorme) Freeling. Shakespeare ? Sim. Gil Vicente e Bernardo Santareno ? Sim, sim. Shepard, Pinter e Lope de Veja? Trissim. Pulsa, viva, a leda tristeza de Camões. José Rodrigues Miguéis voltou da América, no mesmo voo de Jorge de Sena. Há Lodge, Hamsun e Nerval. Há Eugene O’ Neill. Há Wodehouse e Lovecraft. Há Walter de
Fora do âmbito geológico da prosa narrativa e da poética, a outros nomes faço de agradecido anfitrião. O historiador Duby (grande escritor-escritor). O pedagogo Althusser (o que enlouqueceu e matou a mulher sem saber como nem porquê). O singular Ariès. O senhor Valéry. O senhor Boorstin. O doutor Damásio. O senhor Teófilo. O senhor Julião Quintinha. O senhor Mattoso. Dom Unamuno.
Daqui a duas horas, noutro vector, vou participar do programa da minha senhora. Anuncia-se-me uma hora (21-22h00) de rádio em formato de entrevista. Tem a ver com a afamada Rampa do Caramulo (em moderno, Caramulo MotorFestival). É trabalho. Retornaremos depois a casa, onde os livros que esperam ordem e onde uma sopa hei-de pôr a cocção: um pequeno tijolo de carne de vaca (com gordura), cebola, nabo, cenoura, feijão, couve e azeite. Sal à medida do lingual, conformes as papilas do senhor reitor. Servido o prato, picar cebola crua e espichar um traço de azeite não cozido. Pão. Noite, depois.
Lembrei-me hoje, durante tudo, disto tão triste: este Verão (que corre ainda), não tomei qualquer banho de mar. Não nadei nas ondas, não me derreti ao Sol, não me descalcei na areia, não senti o apito benignamente temeroso dos senhores banheiros que vigiam, por fastio, os mergulhos das crianças e dos proboscídeos. Não tenho férias (nem ofício) há não sei quantas vidas. Deve ser bom sinal, só que eu não interpreto sinais – dou-os à interpretação.
Sobra-me a beleza. Digo: a do mundo. Estou sempre à beira de um enfarte de tílias. Cardiovascula-me sempre a rapidez dos castanheiros ao vento. É-me sempre renal um cálculo de pedras: ao monte, na serra, prateando-se de Lua para acinte sexual de lobos extintos e de raposas quase isso. Habito instâncias e circunstâncias de perigosa formosura: estes montes, estes arvoredos, estes pingos de cal a que chamam casas ainda não percebi porquê. Vivo correrias aéreas, sentado na pastelaria. Tenho em casa muitos fascículos da colecção Jacto. Deito-me na cama e ando de cavalo? Não: já não sou o aríete deslumbrador de torreões femininos. Deito-me na cama e vou à Noruega. Durmo entre gelos que Jack London estabeleceu na estante que ainda lhe não atribuí. Deito-me no sossego triste, suave e civilizado de todo o corpo que se cansa de cansar-se, libertando sinapses incompletas que os sonhos gambiarram como a palimpsestos de feira popular.
Sobra-me a beleza. A mesma hora consumi muitas vezes, em muitos anos muito diferentes, por lares de repouso folheados a mármore e a datonomástica. Sim: não vou a terra que não vá a mortos. Uma excepção se me imprime (grave, gravosa): quando, há coisa de três anos, fui a Santarém dar duas rosas, regressei por Rio Maior. Passei perto do sítio onde suponho durma Ruy Belo. Era late in the evening, porém, não dava para parar, ir, ver, ler, sentir: S. João da Ribeira, Rui de Moura Belo (1933-1978). Estou perdoado, para já: não fiz ainda quarenta e cinco anos. (E, algures entre 1979-82, lancei sozinho, eu também, a bola de basquete à tabela: e também contra a campainha; não era no Liceu de Santarém, era no da Senhora Dona Maria, em Coimbra.)
Alguns Pedidos Gentis
08/09/2009
& - Primeira referência a Iago Flandres, à Pensão Runa e às senhoras Adelina Esteves e Júlia Príncipe
Souto, Casa, manhã de 8 de Setembro de 2009
(Sombra: 27 de Abril de 2009, algures)
Beleza antecipada do novo dia: pano de luz, pessoas, animais, plantas, pedras. Setembro, mapa vivo, fronteira do Outono. Possibilidade razoável de escrita, certa de leitura. Luta também razoável com os meandros da consciência. Comunidade linguística vingando vindas, partidas & chegadas, idas, vidas. Uma volta documentária por imagens sempre fascinantes, quais elas sejam no dia novo (em folha).
Poder nunca desistir disto: existência redactorial, digo.
Convívio sem vilegiatura de mortos & vivos, inanimados & cósmicos, onde dói e onde não. A vida também como economia emergente em vi(d)as de desenvolvimento. Poder anestesiar algumas vezes o farol dentro: mesmo sem leitura, sem redacção mesmo. Merecer a praia vertical das dez da manhã em plena aldeia, pleno século XXI. Ver passar as bandeiras, os estorninhos, as viaturas do mercado abastecedor, as sombras da noite caídas aos pés do Sol.
Pequenas, ferozes alegrias: um jazz calado a partir de dentro, com muitas janelas, muitas catedrais-de-são-paulo. Inscrição de notas na agenda multianuária para construção íntima do Senhor Iago Flandres, inquilino da Pensão Runa. Nomes de senhoras: Adelina Esteves e Júlia Príncipe.
No televisor, cenas de putas & polícias, donos da bola & autarcas. Carnavais tristíssimos & quotidianos. Mas beleza subida: algumas casas, alguns sertanejos recantos do rio, pontes traçadas a tinta-da-china no ar-papel-de-seda. Isso sim, muitas vezes.
A NOITE EM BREVE ou CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS (uma portugalidade delével) - 19
19
Caramulo, manhã e tarde de 3 de Setembro de 2007
Agosto foi um mês chilro. A poluição mundial matou as estações do ano. Setembro arrancou em ademanes de Grande Estio – ou grande estilo. A luz é tanta, que a manhã surge como uma catedral sem telhado, devolvendo folhas de ouro ao céu, onde nuvens e aviões parecem deflagrações de cal.
Ma femme reviendra ce matin de Viseu. Precisamos de ir ao sal e ao vinagre. Há chouriço e fruta em casa, mas vinagre e sal acabaram-se-nos anteontem. Falaremos durante. Depois, à tarde, enviarei um Licor para Paris, oferta a Lídia Martinez, uma excelente amiga nova que me chegou do que vou herdando do editor e amigo José Antunes Ribeiro. São coisas boas para a mais recente segunda-feira da História.
Iniciei o boletim de hoje com uma referência grata a Setembro – e no entanto já anseio pelo Inverno, o verdadeiro. Quando o frio voltar, voltarei ao coração monástico de Rilke e às andanças de Holmes e de Maigret: releituras que a invernia nunca deixa de me presentear com. Um mapa de alegrias perdoáveis, enfim. E também: bolsas respiratórias no frio algodoado. Em casa, em silêncio, assisto à condição florestal das estantes. Sou feliz por quase nada.
Longe daqui, o mar fala barcos. Homens maciços tripulam a dura poesia dessa eternidade. Vejo daqui esses longes tripulados. Antigamente, a minha Mãe olhava o mar com o espanto tranquilo de quem gerou tal coisa. As mulheres e o mar esperam-se desde sempre – e correspondem-se. Nós, homens, embarcamos na incompreensão de tanto amor – de tanta perda. Alzheimeriamos as nossas vidas navegantes. Por isso nos soam as ondas a papel amarfanhando-se.
Estou na manhã com este idioma antigo. Trabalho a lentidão do sangue: circuito-fechado. Fujo só pela memória, por sua mentirosa verdade afectiva. Gosto de saber que António Sérgio nasceu precisamente no dia em que morreu Ivan Turguenev (diz-mo o Jornal de Notícias). Coisas que amor saber para nada, para nada e para quase ninguém.
No parque da vila, corredores babujam sombras coruscadas a ouro em flechas de pó voador. Ninguém transita – e no entanto todos passam(os). Por essas ruas vegetais, ambularam outrora os tuberculosos, meses e anos e décadas e manhãs. A terra bebeu-os, deles resquiciando não mais que vaporosas gazes sem lembrança do que foram em vida.
Soeiro Pereira Gomes e John Steinbeck tomaram-me cedo. Esteiros é um livro inesquecível mas esquecido – eu sei por que e por causa de quem. Do norte-americano de Salinas recordo muita coisa, entre que avulta um pequeno-almoço de toucinho e café magnificamente exposto numa das histórias de The Long Valley, salvo erro. Estas coisas solitárias e mundiais: ter lido, desejar essa primeira vez de volta sem ter partido.
Há muito (me) parti, porém. Ainda hoje, no escuro de algum teatro, me apercebo da impossibilidade do regresso. Na luz cénica, corpos e palavras mumificam a angústia essencial dos vivos. Eu estou vivo no escuro. Começo logo de manhã.
Parti muito. Devo nunca ter chegado. Estas são as minhas palavras? Sim, mas menos isso do que (finalmente) uma verdade: estas são as palavras a que pertenço. A estas palavras (a este idioma) entreguei a minha vida e as minhas mãos: três bandejas que adejam de folha na luz negra.
Adejam, sim. Concedo-me percepções que só a loucura da língua esclarece. Perante uma mulher, por exemplo, digo-me: lírio. Não é um lírio, esta branca magrinha de cinquenta anos que pede um biscoito de canela e um chá verde? Um lírio é: e eu entreguei a minha vida a esta floricultura que não toca, mas sente, seus (de)lírios.
Há outras coisas.
Muitos anos me convenci não amar bem. Amo bem. Algumas pessoas, todas as cores, determinados animais – e a Língua Portuguesa. Só isso me conta. No mês passado, tarde do dia 18, um homem chamado Fernando Jorge embaciou-me a vista relatando-me de seu Pai. Há cerca de dois anos, a mulher morrera. O Pai, aprisionado pelo Doutor Alzheimer, telefonava ao filho às sete da manhã.
– Não sei da tua Mãe. Procurei-a por toda a casa.
Era numa piscina de água do mar da Figueira da Foz. Em torno de nós, os filhos dele borboleteavam como papel-de-seda deixado ao vento. O céu abobodava a cerâmica azul de uma doçura quase insuportável. Perante a praia, a Torre do Relógio marcava pontos, perto de bandeiras vivas. Gente dentro de água flutuava silêncios de rã absorta. E eu ouvia aquelas palavras portuguesas de um destino mil vezes português:
– Não sei da tua Mãe. Procurei-a por toda a casa.
Ao fim do dia, jantámos com as crianças dele num sítio preservado pelo frio de Agosto. Tiraram fotografias. Depois, foi cada um à sua vida: a seu Doutor A.
Vejo escurecidos corsos de homens em terras a que não irei senão pela escrita: gandulos escoceses vivendo e bebendo do desemprego em bares sitiados por divorciadas que dão umas baldas à procura do baldado amor; silhuetas pé-de-arroz em água vietnamita, bicudos elmos de palha, curvados como flores terminais; guardas-nocturnos guardando a noite, aguardando a manhã, por condomínios povoados de médicos e traficantes ciganos, um cãozito inofensivo aos pés; autómatos japoneses tirando a gente fotografias automáticas; gaibéus ribatejando vietnames de Portugal nos salazar’anos; Rilke no Castelo de Duíno.
Mosaicos de 30x20 forram as paredes da pastelaria até altura de ombro sentado. Uma rapariga mamalhuda como uma vaca de pé toma descafeinado por chávena vermelha. Os assassínios da noite no Porto são celebrados na TV com uma gula apetitosa. E lá fora a luz desvela a noite interior dos objectos.
Manhã muito cedo, recordo, acordei ao cabo de um porto de sonhos inatracáveis. Levantei âncora, lavei-me, comi fruta, vi o correio (alguma coisa), parti a tomar café e jornais na sala dos anjos terminais. Eles chegaram pouco depois, cerimoniais sempre e sempre cerimoniosos, cada um a sua mesa e em sua cadeira, separados e sós como recados de família. Tomaram café, fumaram. Aquele escreve num caderno de capas pretas como eu. Aquele pediu-me o cinzeiro. Aquele balbuciou coerências só dela. Aquele pestanejou em morse. Eu assisti.
Chega agora a tarde: pano branco atirado à flanela respiratória; país versilibrista de horas que não rimam senão consigo mesmas; estendal de corvos azuis numa manta de ferro. Chego agora à tarde: levo comigo canivetes idiossincráticos, que eu diria, até, aristocráticos, não fora a minha irremediável vocação de pobreza. São palavrinhas justapostas, não reflexivas mas reflectoras: espelhinhos-de-mão, esmaltes dados a água numa luz que é pedra, que é gente e que é antes.