29/01/2009

Cenas da Vida Pluvial

© Roger Fenton
Cloud (study, 1859)




I. Uma Vez

Souto, manhã de 29 de Janeiro de 2009



Deve estar a chover em Londres e nós aqui.
Uma criança olha de dentro da mercearia o que chove no pátio, ave engaiolada a cristal pobre.
O pinheiro mais alto lava a cabeça primeiro do que os outros.
Cheira a café e a sabão.
Os telhados parecem sangue de novo fresco.
Uma vaca serve de escala a um prado breve.
O homem do Volkswagen, é pena ter morrido.

Hoje não há azul.
Um prédio amarelo-canário acinzenta-se na bátega.
Um cãozito castanha defeca perto da vaca.
Insólita para sempre, a palmeira da aldeia sonha com o Sol.
Os gajos do saneamento lutam contra uma tampa.

A criança é de cabeça vermelha e olhar coralino.
Aquela criança não precisa de Nicholas Blake, só de que não chova.
O que chove, amortece a autoridade daquele sinal de trânsito.
Dão à criança um pacote de bolacha-baunilha, fazem-lhe uma festa na cabeça,

uma vez por chuva,
uma vez por festa.



II. Um Verso de Visita

Pombal, entardenoitecer de 28de Janeiro de 2009



Hoje não fui ver o mar, fiquei por casa.
Entardenoitecendo, saí a rever a terra.
Negrejei pelo subúrbio da vida como quase sempre tenho feito.
Hoje não fazia tanto frio, as bocas não atiravam vapor.
Numa pastelaria, esperei que um verso me visitasse, aquele verso que há tanto me procura e eu não encontro.

Torno-me avoengo, eu sei.
Benedigo, enfim, os aparatos mudos da melancolia, isto que faz de um homem uma espécie de árvore,
uma palmeira da chuva.
Pássaros são acontecimentos de tinta
– e eu só posso lápis.

Tomei café, comi laranjas, fiz um soneto, bocejei.
Andei e desandei.
Esta noite reverei o mar quando, dormindo,
puder quase não pensar.



III. Cantiga Tida ao Sol

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009




Estive ao sol da manhã na praça
como se fora um homem de antigamente
numa praça de antigamente
a um sol de outrora.

Faltava-me na cabeça o chapéu preto de Afonso Duarte, príncipe poético da Ereira.
Faltava-me ter tido colocação na Companhia Nacional de Navegação há 70 anos.
Vale-me não me ter faltado o sol, à falta de sal e de navegação e de mar.

Cortei o pão com gentileza, usei bem as mãos.
Sou o homem que quero na pior das hipóteses: um cavalheiro pobre que cheira a sabão.

Devo ter tido outra vida, mas as casas de artistas não pensionam metempsicoses por aí além.
Devo ter sido outra vida.

(E então a música torna-me devagar, vê:)

Um coração na gaiola
Um passarito na mão
’ma cravelha de viola
Um rebento em floração

Uma tricana cantante
Um direito a ser feliz
Uma promessa adiante
Um dizer que se não diz

Uma garrafa de anis
Um vizinho adoecido
A esperança de um petiz
Ex-mulher de ex-marido

Um peixe que luz de prata
Na figuração anil
Quem mui vive muito mata
Mata cem e mais de mil

Quem tem credo dorme junto
Quem não tem é só que dorme
Trinta quilos de presunto
Vêm de um porco enorme

Cantigas tidas ao sol
Entre a passageira gente
Com chapéu de aba mole
Triste e preto, antigamente.



IV. Integral com Navegação e Banda

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Agora não desejo já o que aliás não poderia ter.
Uma colocação na Companhia Nacional de Navegação.
Um diploma rápido e falso em Literaturas Africanas.
Uma semente maligna.
Ou uma vida mais ainda que esta digna.

Devassei em meu interior tempo lareiras arrefecidas.
Cheguei tarde a quase tudo, a começar pelo nascer.
(Mas não se deve passar as terças-feiras culpando as segundas
e as primeiras.)
Só quis ser navegável como uma floricultura idiomática.
Isso – e nunca ter chumbado à matemática dos idiotas.

Quem viesse do lado do mar, haveria de estranhar-me.
(Olha este gajo ainda por aqui etc.)
Perdoa nos outros os teus erros,
digo-me eu a ele.
Perdoa aos outros os teus erros,
anda.

Aos domingos de antigamente, no coreto a banda.
Ourejava da fliscornista a mansa cabeleireira,
negritava retintamente o bigode do bombeiro,
o tarola rufava anda-não-anda,
dia de funeral é dia de bebedeira,
já só desejo ora o meu tudo por inteiro.



V. Desimport-Export

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009




Uma das coisas mais formosas que me aconteceram, juro, foi ter vindo fazer a barba e aperceber-me da completa, total e inegociável desimportância de tudo: barba, gilete, espelho, coisa e poema e formosura.



VI. Descrição de Existência(s) em Casa de Pasto

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Lombo assado no forno e feijoada de chocos, meias-doses individuais.
Copos camélia-forma, armàriozinho de galheteiros.
Portas de saloon-cowboy dobradiçando lavabos.
Cozinheira absolutamente reumática mas sorridente.
Toalhas de papel, naturalmente.
Chão ladrilhado a mosaico 30 x 30.
Pratos de parede de louça grossa.
Fragrância forte a cebola e a vísceras.
Um guarda-chuva verde esquecido desde ontem no coiso de latão.
(Fora: vizinhança comercial de drogaria, advogado, camisaria, pastelaria.)
Às quatro da tarde, fígados de aviário em pires-frango: cominhos e pimenta laváveis em vinho branco.
Até à noite: uma paciência portuguesa,
uma terça-feira.



VII. Estas Coisas assim Pessoais

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Às cinco e um quarto da manhã, trovejou e granizou com fartura, mas ele há sempre razões para esperança.
Carreiram formigas a negrito pelo lado enxuto da terra.
Dardos de sol alvejam a amarelo lances e esquinas.
Passa um homem de avental branco explodido a vermelho como se Pollock a carregar meio porco na longitudinal.

Depois de almoço, entristecemos todos de melancolia digestiva.
Isso é normal, até porque às cinco, mais coisa menos coisa, uma quase euforia ganhará alforria própria, como um menino recente respira sem pedir ar a ninguém, sequer à respectiva mãe.

A sociedade pode ser uma coisa maravilhosa, amestradas as almas.
(Tem-se apenas de não sofrer de mar nem de mais os cinzentos, os prédios em blocos.)

Eu muito naveguei e navegarei entre bons-dias que o não foram.
Eu muito aprecio ainda e cada vez mais
os quintais
que foram, são e serão
países internacionais
para a criança
que os povoa
de estádios.

Estas coisas assim pessoais.



VIII. Surf

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Uma onda de água mia e tsunamia os olhos das pessoas de todo o mundo por todo o mundo.
Não há nada a fazer, é a força da natureza, é a força da água.

As pessoas doem-se muito, umas porque são mães, outras porque são pais, outras porque são filhas,

tem ondas.

1 comentário:

Manuel da Mata disse...

"Negrejei pelo subúrbio da vida como quase sempre tenho feito."/
Um verso fabuloso, meu amigo!
A lembrar o Pessoa da "Tabacaria".
Abraço.

Canzoada Assaltante