12/01/2009

Duas Urbanas para Uma Campestre


© Sandra Bernardo
Aveiro, 30 de Agosto de 2008

I. NENHUM DE NÓS VAI NUNCA MAIS SER PARA SEMPRE
– composição urbana para ler no campo

Para o Ca’litos, nos 31 anos do menino

Café Esquina, Pombal, noite de 8 de Janeiro de 2009




Crua nua luz de farmácia,
dentro as ovelhas clínicas abastecendo-se
de pílulas de erva e poções de água de ribeiro químico,
coitadas.
Tenho muita pena das pessoas, nas farmácias como fora delas.

Sou compensado em minha vã misericórdia
pela visão de uma senhora na ponte do rio.
Alguns 60 anos bem medidos.
Roupa cómoda e quente, matizada
de castanhos graduados do claro ao escuro.

Já é escuro, claro, a esta hora.
Passei em frente à entrada traseira do tribunal.
Lembro-me de uma manifestação popular ali.
Foi há muitos anos.
Tinha havido mais um dos pobres crimes pobres
da nossa ruralidade: gajo mata esposa e suicida-se.
O povo juntou-se ali não sei para quê, o gajo
já estava morto.
Deixou saudades como a fome, o cabrãozinho.
Pus isso num livro chamado O Preço da Chuva.

Gostei de passar pela senhora sexagenária na ponte.
Houve tempos em que quis ser um velho assim:
enroupado de flanelas castanhas, sereno, bonito.
Duvido, muito sinceramente duvido.

Escrevo composições urbanas com o coração no campo.
Se me quiser furtar a isto, vou ao bar onde
os amigos e demais companheiros de fadiga tabágica
abocam cocacolas de laranja
e pirezinhos de orelha ensalsada.
Fico ali umas horas a deitar silhueta às paredes.
Hoje não.

Sempre que posso, enfuno as velas de caligráfico vento
e dou-me alas.
Dou-me azo, dou-me asas,
sio sem cio rés-vés as casas,
ponho-me na alheta atlântica,
isto de ser-se atlântico em doca seca é que é,
a vida nunca facilitou nada ao vivo,
há que ingerir carbono e gordura e vitaminas
e sais minerais da-sibéria-aos-urais.

Suave pátina de gelo nas sobrancelhas,
bafo árctico fumando a boca endurecida,
as mãos cortadas no tempo do pão,
versos escuros (lobos correndo na neve),
Jack London lido à lareira no fundo inverno,
não,
não envelhecerei sobre uma ponte, dando o rio.

Agora eu vou estabelecer regras imprestáveis
para uma loucura civilizada, triste e macambúzia
mas civilizada.
Nenhum de nós vai nunca mais ser para sempre.

Mas podemos amar uma língua,
podemos ser nacionais e de flanela por dentro,
podemos alinhar as farmácias, os tribunais,
os bares – os cartórios líricos
que nos dão
o usucapião
de nosso mesmo cultivo e amanho,
a tudo retribuindo os impostos devidos.

Sim, sim:
o coração pode ser o n.º 2 do art.º 64
do Código do Notariado.



II. NA MINHA PRIMEIRA E PENÚLTIMA JUVENTUDE

Charneca, casa do JP, Pombal, noite de 10 de Janeiro de 2009



Na minha primeira e penúltima juventude, andar com o coração nas mãos não era uma doença.
As patologias vieram depois, decorrentes daquilo a que chamamos normalidade.
Hoje, vivo de amigos, quando posso, estou sozinho à varanda a ler no escuro as estrelas eléctricas da cidade atiradas ao veludo por um deus desesperado e brincalhão.
Faço dos sábados um caderno, tenho ideias de rejuvenescer contra tudo e contra todos, persigo a cristalização do verbo em verso.



III. SEMANADA



Casa, Souto, tarde de 12 de Janeiro de 2009


Segunda-feira, a erva é o cabelo de enterrada cabeça de telúrico monstro.
Terça-feira, duas nuvens mancham uma folha de sol e giz azul.
Quarta-feira, espero-te do lado da ponte, sobre corrente calendário de água.
Quinta-feira, volto para junto do monte onde celebra a raposa um labirinto de laranjas encarnadas.
Sexta-feira, se puderes, vai-me buscar.
Sábado, paga-me uma taça de fruta, deixa-me andar nos carrinhos, evita-me o hálito, oferece-me o crepúsculo da agonia.
Domingo, se puderes, vai-me buscar.

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Canzoada Assaltante