03/01/2009

Da Traça Calígrafa


© Alfred Stieglitz
Snapshot, Paris 1911




Casa, Souto, noite de 3 de Janeiro de 2009


Escusado procurar as chaves anteriores da casa futura.
Escusado buscar amanhã o século interior.
A traça de hoje esburaca os livros de ontem,
mas a traça deve ser assumida como caligrafia imanente.
A senhora foi aos ovos?
A menina é parva?
As árvores e os corvos fazem o que lhes é humanamente possível.
Odessa e cifração Enigma ao fundo da avenida.
Tanto faz o lado esquerdo como desfaz o direito.

Agora, calma.

O cavalo compassa o ritmo ósseo.
As moscas zunem as carcaças talhadas a ferro.
O Teatro Oficial apalhaça-se de gala para a amante
do senhor ministro, que é congolesa de nascimento
mas tem passaporte belga.
As instituições funcionam.
Há uma calma larga. Se chover, paciência.

A esta hora um barco escreve espuma no Canal da Mancha.
Acima, um pescador reproduz o céu de olhos.
Mistificações e mesas tripés sempre cantaram de galo.
Não nos vamos chatear por causa da hora tardia,
do século tardio, da tardia dia noite.

Vale muito mais bocejar nas inaugurações.
Vale muito mais arrotar o champanhinho corrupto da fé.
Transborda-se a carga orgânica de comboio para comboio,
manda-se vir uns violinistas húngaros, acende-se uma fogueira
no pátio de pedra, vigia-se a emanação menstrual da
Sociedade de Geografia, toda a hora é tardia.

Um tempo material como um vaso é presente na sensação.
Na ideia, é outro: é outro e floreia, tem uma cor de ar.
Um homem transporta um escadote, os olhos no chão.
O comércio abre a boca como o peixe, diz adeus e bom-dia.
Coitado do comércio, coitadas das pessoas no presente interior.

Os chapéus subiam as cabeças à condição de faróis.
A pele das mãos ainda escreve as mãos, mas ser antigo agora
não tem o mesmo futuro que tinha antigamente.
Agora, ainda assim, alguns rostos são moedas brilhadas
pela lua, resistem às marés, não os derrubam os carros
sem condutor que passam decapitadamente pela cidade.

Daqui não sairemos defuntos, muito menos amanhã.

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Canzoada Assaltante