1
Pombal, noite de 3 de Janeiro de 2009
Fluidos e esferas e mecânica e fluidos
– e ser láctea a vida das pessoas,
áurea a dos animais.
(Todos os animais, nem todas as pessoas.)
No fundo do mar, um banco de jardim.
No fundo do mar, um banco de jardim aguarda
as almas-medusas, a translucidez final
dos náufragos-em-terra-em-vida.
2
Casa, Souto, madrugada de 4 de Janeiro de 2009
Porno abundante nas assembleias.
Gabardinas, calcinhas, calcanhares gretados como lábios.
Plano do bairro anti-social, esquerdireita, cimabaixo.
Marquises e marquesas, plantas apeadas.
E a vida pervagar as pessoas.
Pulsões leitosas, chaminés e faróis.
Ter pena da vida, num canavial poupado pelas imobiliárias.
Ter pena do Japão.
Aceitar os credos que revestem de verniz o caruncho, não.
Transportar os ossos.
Não aceitar o que suspende a vida.
Não ler, ver apenas?
Não ver, ler apenas.
Ler apenas, não ser.
3
Ibidem
Quarto-cozinha em sótão final.
Janela-nesga dando para baldio de ciganos,
onde um cavalo emagrece de couro e muitos outubros.
Os outubros dando rabanadas.
Chuva nos olhos: o prisma.
Pessoas caçadas a chorar à chuva.
4
Ibidem
O cansaço extremo de um homem.
Sentado na borda da cama.
Nem capaz de levar as mãos ao rosto.
Os pés lá em baixo, longe, um nu,
o outro com meia de xadrez azul-creme.
A passagem para dentro do olhar que se apaga para fora.
Violência da paz: anos quietos sempre perto de uma cozinha.
Aceitação dos termos da vida:
renque, anca, frasco, íris, sebenta, linóleo, pão.
5
Ibidem
Afectação dos recursos nacionais,
sábado futebol clube,
um peito muito magro procurando carinho às cegas,
haplologias recordadas perto de uma fábrica de sapatos,
mulheres tropeçando sacos de víveres,
ultimação caligráfica dos pássaros marinhos,
o papel todavia atlântico da solidão,
os cadáveres das árvores-de-natal alinhados no talude da ferrovia,
a ferrovia de dupla linha como os cadernos de caligrafia
de outro século,
camisas negras corvoando arames de secar,
notação dos ursos nacionais,
usos & costumes & comes & bebes,
circulação pré-cancerígena dos ourives pobres da Baixa,
facilidade da delação,
ganga & sarja & napa & terileno,
suspensão das actividades marítimas do coração,
apreensão de limalha de ouro em boca de pássaro,
torre com relógio fantasmando corredores do tempo-espaço,
vantagem libidinosa do endinheirado,
bafios & bolores & mofos & belidas,
camisola interior de cavas durante o barbear,
certas palavras fundamentais garantindo livre-curso nas veias,
o mapa cosmológico do cérebro,
jazz & narcóticos & amanuenses & o-rapaz-chamado-Estêvão,
carros da polícia tubaronando vielas-lixeiras,
biografias imprecisas e malevolentes de santinhos sem paróquia,
a bênção filosófica de um molho de tomate bem feito,
o cálice grosso é para o anis, o fino para a malvasia,
côdega & códão & geada & sincelo,
jornais antigos debandando o futuro,
um pânico de aranhas patinhando-patinhando,
o-rapaz-chamado-Estêvão comendo um cachorro-quente ao frio,
uma fileira de garrafas cor-de-petróleo nas costas de Ibraim,
Ibraim-o-senhor-da-loja-no-outro-século (vendia cadernos),
passeio marítimo na primeira hora de luz (cinza, cinza),
palmeiras morrendo de pé na areia castanha,
respirar o amarelo & respirar o azul lá em baixo,
um bigode fino tracejando uma boca oblíqua e fina,
saturação de componentes tóxicos a olhos nus
(um olho nu, o outro calçando padrão de xadrez azul-creme),
tanta véspera e amanhã nenhum,
vozearia de peixeiras atrás de pedras,
cacarejar de crianças metidas em água e sal,
esquecer um nome como esquecer uma terça-feira,
o armàriozinho branco dos medicamentos sem portinhola,
o espelho mágico que troca rostos por retratos,
o céu todo chumbo emoldurando Deus,
a rapidez das mães na morte,
viuvez & caldos de galinha & psychés & naftalinarcas,
Amor à Pátria & Amor de Mãe & Temor a Deus & Arreda-que-é-Chumbo,
galeria de manequins vestidos à Antiga Portuguesa,
coliseus sem virgens nem leões nem gladiadores (só cristãos crus),
juízo & risco & segredo & cominação,
turismo & barbiturismo & facilidade & delação,
esquartejar reses e cantoras por ofício imemorial,
às vezes a paz sem ser por castigo,
sistema de trocas no comércio carnal,
marulhar intestino de porão árctico,
bestialidade das funções suavizada pós-frequência de reuniões com bule,
a ecceidade: voo e ave em simultâneo,
cubículo com porteira aquecendo café chilro em bico de gás,
Estêvão-nome-de-rapaz
– e o que mais se verá.
Pombal, noite de 3 de Janeiro de 2009
Fluidos e esferas e mecânica e fluidos
– e ser láctea a vida das pessoas,
áurea a dos animais.
(Todos os animais, nem todas as pessoas.)
No fundo do mar, um banco de jardim.
No fundo do mar, um banco de jardim aguarda
as almas-medusas, a translucidez final
dos náufragos-em-terra-em-vida.
2
Casa, Souto, madrugada de 4 de Janeiro de 2009
Porno abundante nas assembleias.
Gabardinas, calcinhas, calcanhares gretados como lábios.
Plano do bairro anti-social, esquerdireita, cimabaixo.
Marquises e marquesas, plantas apeadas.
E a vida pervagar as pessoas.
Pulsões leitosas, chaminés e faróis.
Ter pena da vida, num canavial poupado pelas imobiliárias.
Ter pena do Japão.
Aceitar os credos que revestem de verniz o caruncho, não.
Transportar os ossos.
Não aceitar o que suspende a vida.
Não ler, ver apenas?
Não ver, ler apenas.
Ler apenas, não ser.
3
Ibidem
Quarto-cozinha em sótão final.
Janela-nesga dando para baldio de ciganos,
onde um cavalo emagrece de couro e muitos outubros.
Os outubros dando rabanadas.
Chuva nos olhos: o prisma.
Pessoas caçadas a chorar à chuva.
4
Ibidem
O cansaço extremo de um homem.
Sentado na borda da cama.
Nem capaz de levar as mãos ao rosto.
Os pés lá em baixo, longe, um nu,
o outro com meia de xadrez azul-creme.
A passagem para dentro do olhar que se apaga para fora.
Violência da paz: anos quietos sempre perto de uma cozinha.
Aceitação dos termos da vida:
renque, anca, frasco, íris, sebenta, linóleo, pão.
5
Ibidem
Afectação dos recursos nacionais,
sábado futebol clube,
um peito muito magro procurando carinho às cegas,
haplologias recordadas perto de uma fábrica de sapatos,
mulheres tropeçando sacos de víveres,
ultimação caligráfica dos pássaros marinhos,
o papel todavia atlântico da solidão,
os cadáveres das árvores-de-natal alinhados no talude da ferrovia,
a ferrovia de dupla linha como os cadernos de caligrafia
de outro século,
camisas negras corvoando arames de secar,
notação dos ursos nacionais,
usos & costumes & comes & bebes,
circulação pré-cancerígena dos ourives pobres da Baixa,
facilidade da delação,
ganga & sarja & napa & terileno,
suspensão das actividades marítimas do coração,
apreensão de limalha de ouro em boca de pássaro,
torre com relógio fantasmando corredores do tempo-espaço,
vantagem libidinosa do endinheirado,
bafios & bolores & mofos & belidas,
camisola interior de cavas durante o barbear,
certas palavras fundamentais garantindo livre-curso nas veias,
o mapa cosmológico do cérebro,
jazz & narcóticos & amanuenses & o-rapaz-chamado-Estêvão,
carros da polícia tubaronando vielas-lixeiras,
biografias imprecisas e malevolentes de santinhos sem paróquia,
a bênção filosófica de um molho de tomate bem feito,
o cálice grosso é para o anis, o fino para a malvasia,
côdega & códão & geada & sincelo,
jornais antigos debandando o futuro,
um pânico de aranhas patinhando-patinhando,
o-rapaz-chamado-Estêvão comendo um cachorro-quente ao frio,
uma fileira de garrafas cor-de-petróleo nas costas de Ibraim,
Ibraim-o-senhor-da-loja-no-outro-século (vendia cadernos),
passeio marítimo na primeira hora de luz (cinza, cinza),
palmeiras morrendo de pé na areia castanha,
respirar o amarelo & respirar o azul lá em baixo,
um bigode fino tracejando uma boca oblíqua e fina,
saturação de componentes tóxicos a olhos nus
(um olho nu, o outro calçando padrão de xadrez azul-creme),
tanta véspera e amanhã nenhum,
vozearia de peixeiras atrás de pedras,
cacarejar de crianças metidas em água e sal,
esquecer um nome como esquecer uma terça-feira,
o armàriozinho branco dos medicamentos sem portinhola,
o espelho mágico que troca rostos por retratos,
o céu todo chumbo emoldurando Deus,
a rapidez das mães na morte,
viuvez & caldos de galinha & psychés & naftalinarcas,
Amor à Pátria & Amor de Mãe & Temor a Deus & Arreda-que-é-Chumbo,
galeria de manequins vestidos à Antiga Portuguesa,
coliseus sem virgens nem leões nem gladiadores (só cristãos crus),
juízo & risco & segredo & cominação,
turismo & barbiturismo & facilidade & delação,
esquartejar reses e cantoras por ofício imemorial,
às vezes a paz sem ser por castigo,
sistema de trocas no comércio carnal,
marulhar intestino de porão árctico,
bestialidade das funções suavizada pós-frequência de reuniões com bule,
a ecceidade: voo e ave em simultâneo,
cubículo com porteira aquecendo café chilro em bico de gás,
Estêvão-nome-de-rapaz
– e o que mais se verá.
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