Casa, Souto, madrugada de 20 de Janeiro de 2009
Pensei que o homem de que falávamos era poeta
por me terem dito que misturava tudo,
mas parece que a coisa, afinal, é do foro neurológico.
Ainda assim, julgo-me capaz de o perceber quando
ele me falar.
Manhã muito cedo, integro a fila dos cantoneiros contratados
à hora.
Havendo trabalho, trabalho.
Não havendo, vou aos chineses comprar lápis e indago
o foro neurológico deste lado da vida e da avenida.
Tenho trabalhado muito nisto, graças a Deus.
E posso dizer que a coisa tem dado resultados, ’inda
no outro dia o Felismino,
que também tem um blog como toda a gente,
me disse
Eh pá, porreiro, passa pelo meu blog que eu também
escrevo poemas e versos e assim.
Agora, do que gosto mesmo muito é
da trovoada nos olhos,
da assumpção matriarcal das compradoras de peixe,
dos senhores que abrem as gabardinas como cortinados nus,
dos cãezitos que trotam como vírgulas ao dispor do pessoal,
das camionetes carregadinhas de mato com uma forquilha em cima,
das agências de viagens carregadinhas de sol fotografado,
das helenas com bandós e melenas,
das madalenas em riquexós e outras cenas,
do Camões Lírico fluviando ainda e para sempre,
do Carl Sagan ter sido baptista metodista graças a Deus,
das cremalheiras das motas como dentições de óleo,
dos pintores municipais,
dos poetas municipais,
dos neurologistas municipais,
do preço das romãs em época de dióspiros,
das sucessivas traduções de Rilke,
da prestabilidade dos manetas nas passadeiras com ceguinhos,
dos esquilos que farruscam de ruivo a palidez do inverno,
das capas dos discos do Fausto Papetti
(Viggiù, 28 de Janeiro de 1923 – San Remo, 15 de Junho de 1999),
do senhor que vende bananas e latas de cera ao pé do quiosque,
da filha desse senhor, junto a quem o milho perde a bondade,
do rir-me sozinho,
de cagar de manhã a horas certas,
dos poemas que batem tipo 30 e tal por cento certo,
das passadeiras com ceguinhos e manetas atrás,
das cordas do sangue atando as sacadas de linfa,
da tundra e da taiga,
dos decotes pulsando banha,
das sextas-feiras à noite no baile das velhas,
dos rótulos mil-e-uma-noites das garrafas de ponche,
dos posters do Sporting nas carvoarias de antigamente,
da escrita da condensação nas vidraças,
do SG Gigante a preço de 1981,
das chávenas azuis que a minha mulher comprou não sei onde,
da vilegiatura lunar de foro neurológico,
de esparguete com azeite picado de alho,
de electricistas com opinião,
de taxistas mais salazaristas do que o Papa,
de crimes de guerra mas só depois da vitória do Manchester United,
dos teus olhos molhados como algas que olham,
da rosa-dos-ventos que o coração fundamentalmente é,
das mãos do meu Pai,
do carácter completamente velocipédico da vida,
dos cinzeiros atulhados de falangetas roídas,
dos cagalhões boiando à vista em dia de visita do Ministro do Ambiente,
do Yukon,
de sapatos verdes e vermelhos,
do substantivo atol,
das cicatrizes que o Tempo tatua nos cantos mais íntimos,
do Código do Notariado,
das putas que assessoram e das assessoras que putificam,
do outono,
dos alumínios entre máquinas agrícolas,
de vermute,
de saber o preto-e-branco de cor,
de queijo de cabra aspérrimo,
de pêras-de-inverno,
de senhoras consabidamente,
de alperces, de gatas e de alpergatas,
de não morrer no sono,
de dormir a vida,
de horários de carreiras para os lados do mar,
de perceber tudo ali na hora,
da munificência dos dicionários,
das capas dos discos de Ray Conniff
(Attleboro, Massachusetts, 6 de Novembro de 1916 — Escondido, Califórnia, 12 de Outubro de 2002),
de quando dá à minha Mãe para a galhofa apesar-das-dores,
da árvore do funcho das garrafas de anis,
do adjectivo matizado,
de máquinas verdes como periquitos,
de Alexandre Herculano,
de sítios onde coçar as virilhas não é índice de iliteracia,
da CIA não,
de Henry James sim,
da cidade de Paris pelos olhos de Maigret,
das preposições que regem ablativo,
das casas amarelas,
da elegância anelar de Saturno,
de lápis Viarco,
de tomar banho contra a corrente de jogo,
do olhar dos burros encontrando o meu coração,
de flores furta-cores,
de pensar que um homem é poeta,
das capas dos discos de James Last
(nascido Hans Last a 17 de Abril em Bremen),
de sardinheiras escarlateando varandas de mansarda,
de sardinhas de lata,
da Rocha Conde d’Óbidos,
de saber datas e nomes completos de cor,
da música imanente,
do Quarteto de Alexandria,
de Demetrio Stratos
(Alexandria, 22 de Abril de 1945 - New York, 13 de Junho de 1979),
de incursões oblíquas em outras possibilidades de sentido,
de palavras fulminantes,
de certa barra de chocolate comida em 1970,
de 1970 em geral e desse Julho em particular,
de desgraças que dêem mais livros do que de fazer,
de arrumar a biblioteca,
de quando está frio mas é possível escrever lenha,
de cafeteiras de esmalte azul,
de orelhas grandes atirando pêlos,
de pomadas de lavanda para os pés,
de plásticos com bolhas para rebentar
e de arranjar trabalho manhã muito cedo.
Gosto.
Não há cá misturas.
3 comentários:
O Abrunheiro está sempre a dizer-nos que a beleza é difícil, como diziam os gregos, mas está em todo o lado e assalta-nos como o ladrão na noite. Consegue quase sempre!
o quase é que fode o abrunheiro
Ó Abrunheiro, como diz um texto quase famoso e que quase foi atribuído ao Fernando Veríssimo em uma quase Antologia, "embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive, já morreu”. Para além do mais, ó Abrunheiro, é o quase que te faz escrever (em bom rigor, cada vez melhor) e oleia o mecanismo do poema. O quase é o quasar de onde irradia a luminescência da boa (?!) poesia. Quantos poetas chegaram a esta luminescência? Quase nenhuns! Tu já lá estás, ó Abrunheiro! Não estás contente porque o quase é quase ?( o quase que falta é fodido de alcançar, porque se calhar não existe)Paciência!, mas é porreiro para mim porque sei que vais continuar a escrever.
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