20/10/2007

Salgueiradas

Desde ontem, 19 de Outubro de 2007, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt), mais uma crónica da série Rosário Breve.
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Salgueiradas

Irritado porque o touro lhe flanqueou a montada, o cavaleiro João Salgueiro não esteve com mais estas nem aquelas. Saltou do cavalo, pôs-se a chamar pelo cornúpeto e pronto: o negro veio e assentou-lhe umas cornadas assim para o jeitosas. Na TV, relataram o sucedido com este adjectivo: “inédito”. Relato eu agora: “inédito” uma ova, que, ao longo da vida, não tenho feito senão destas salgueiradas e muito antes dele.
A única diferença entre mim e o João Salgueiro consiste em que ele salta de cavalo para touro, ao passo que, comigo, é de cavalo para burro. Para mim, no entanto, esta diferença aproxima-nos mais, ao senhor cavaleiro e a mim, do que nos aparta, até pela clara evidência de ser sempre burro saltar para touro. Claro que o mais ajuizado seria, é e será que o burro se deixe estar a cavalo no cavalo.
Não lamento a minha condição de peão de brega sem licenciatura em hipismo e sem ouvido para pasodobles: por cada cornada recebida, tenho a cicatriz de uma pedagogia. Quero dizer que tenho aprendido alguma coisa com as minhas próprias salgueiradas. Esta é capaz de ser a mais clara: o pior marrão não é o formoso animal de 500 quilos que pontua a verde lezíria com a pérola negra da sua silhueta. O pior marrão é o outro: o homem a mim semelhante que, burro de cornos, me quer cavalgar a dignidade com a lei retroactiva, o imposto cego, a cunha corrupta, a falência fraudulenta, os talentos da TV e Bruxelas.
Nada disto tem, aliás, qualquer importância: a vida é um campo pequeno, nascemos e morremos todos entre campos e só o campo-santo final é, afinal, um campo grande. Azambujar lamentações é irrisório. Vilafrancadexirar queixinhas é coisa de lingrinhas. Escalabitar ferros curtos nas próprias costas é beócio. E é metáfora indigna de forcado dizer do País que se trata de casa redonda por todos os lados e sem telhado por cima. O resto (como todos, João Salgueiro incluído, sabemos) é sol e sombra.
Mais sombra do que sol. Muito mais sombra do que sol.

3 comentários:

Manuel da Mata disse...

"Nada disto tem, aliás, qualquer importância: a vida é um campo pequeno, nascemos e morremos todos entre campos e só o campo-santo final é, afinal, um campo grande".

Daniel Abrunheiro


Belo texto.
Manuel

Daniel Abrunheiro disse...

Como li num homem da Mata, Castelo Branco, nada me deve a Pátria nem vice-versa: só, talvez, um figo maduro.

Paula Raposo disse...

Mais que excelente!!!

Canzoada Assaltante