Alguma vez seremos
alguma vez algo fomos
o tempo é tudo o que temos
tempo é tudo o que não temos
tempo é tudo o que somos.
Viajo muito
perante a parede.
Não me foi dada a sorte
de burro que só palha come
e só palha quer
e é feliz com palha.
Dei-me a mim mesmo
esta parede
este muro
nem um espelho é
como espelhos são
para os pintores
os quadros
e para os poetas
os poemas
e para os arquitectos
como para os pedreiros
as casas.
O papel em que escrevo resulta
do assassínio de uma árvore.
É um papel qualquer.
Mas nenhuma árvore é qualquer
é sempre aquela árvore
nunca outra
qualquer.
O que digo também resulta
de um assassínio qualquer
por exemplo o do nascimento
coisa que a tanto amor mata
ou a nenhum
mas faz-se sempre o jeito
não faltam homens
nem mulheres
para um jeitinho
qualquer.
Sou um homem chegado à noite
um homem a que a noite chegou
não há que confiar grande coisa
neste homem que tem
que tenho
pedras e sílabas
em igual profusão.
Já comi
naturalmente
a minha palha
mas sempre que posso como
erva
ou então
fumo-a
ou então
piso-a
ou então
faço-a
crescer nisto
que queria fossem quadros
ou poemas
ou um espelho de outros
e não passa de uma parede
com o mesmo
grafito
o mesmo
grafismo
o mesmo
gajo.
Não queremos voltar a ser
pois não?
Queremos só ser
queremos não ter já sido.
Já fomos
mas
somos deveras ainda?
Morreu hoje o senhor Amaro da minha rua.
Disseram-me há bocado.
Fui à minha vida e fiz o meu trabalho.
Depois vim escrever isto na parede.
Caramulo, noite de 17 de Outubro de 2007
1 comentário:
um lindo labirinto onde a vida segue, ensonhada em metáforas apaixonadas e aguerridas, um quadro de luzes com mais sombras, quadro de gesto simples e amável.
Al buen jardinero
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