09/10/2007

A Condição Litoral – versos turísticos para crianças antigas


A Condição Litoral – versos turísticos para crianças antigas

(Um dos amores invencíveis da minha vida é a cidade marítima que se dá ao mundo com o nome de Figueira da Foz. Fui feliz nessa terra feita de água e de luz. Justo é que estes versos, tendo dela vindo, para ela sejam.)

I

Quando de novo formos a ver o mar
que ele lá esteja é tudo o que peço
pouco pedir não é menos ter
se a nós ao menos nos tivermos.

São alguns gestos da claridade mesma das praias
um copo de água na mão é uma bandeira de chuva
descalços pelo areal tocamos das esferas a música
de antes as gerações viveram tudo quanto viveremos.

Palacetes e casebres da mesma areia erigidos
iguais anseiam todos por praia voltar a ser
ao longo da que maravilhosas coxeiem as crianças
como gaivotas pequenas como grandes aves.

Retornemos à frescura dos bazares miniaturais
da conventual praça onde as sacerdotisas peixeiras
oficiam salmos e salmões e o mitológico polvo
das profundezas da alma onde a memória nada.

Não podemos estar sempre apenas aqui
por nossa casa vazia correm crianças transparentes
somo-las repetidos nos espelhos adúlteros
murchando sem iodo no estanho tóxico.

Não abjuremos a condição domingueira do desejo
lautos farnéis conciliemos em seira de esparto forte
e o ar solar em profundos haustos altos bivalves bebamos
resgatada a botelha da molusca sombra fresca das rochas.

Ao mar me portes de volta muito pois muito
tenho eu enfraquecido de arbóreo mineral langor
sem outro vital transporte que este dos versos
tossidos manhã muito cedo em enxuta pastelaria.

Que o vento litoral nos accione em levitação
como a panos docemente enforcados em arame
desfraldadores das acústicas vozearias da viração
e dos transcoloridos hologramas dos barcos ao longe.

E muito morramos escalando-nos nus deitados
do homem dos gelados a voz vinícola recebendo
recebendo do homem da bolachamericana a solidão de tostão
e da Mãe outra vez nova a água de groselha maravilhosa.

E tu não sejas minha mulher sexual mas irmã minha
criança um pouco mais nova menina antiga
precoce reorientadora de minha vida em versos mal gasta
rapazito dado e perdido em nostalgias temporãs.

Na praia o favor farás de amar-me pelo que não fui
e sido deveria ter quando éramos para ser
sempre meninos de iodada derme e naturais dentes
uvas trincando como a pérolas de vinho doce.

O clarão da serra nos chegará florão do alto
a cal dardejando de suas casinhas comoventes
pouco nada nos dizendo não ainda a morte
que tais peças junta em dominó de esquecidos inquilinos.

Do fundo das águas exumaremos traineiras
com delas os escuros pescadores da prata zichadores
pelas frinchas descalafetadas escorrerá o salitre
e aos fantasmas da lota abraçaremos fraternais.

Nos não falte nem tanto mar nem amor tanto
por sobrevivente turismo de crianças antigas nós
constantes decerto de fotografias versicolores
em gama de negro giz cinza e azul.

Longe do mar em salas de velhas mães
somos já rostos de galeria passe-partout
idênticos marinheiros que perderam as graças do mar
em 1970 ano mesmo desse suicida Yukio.

Tudo o que peço é a memória das uvas lavadas
em copos de água transparente e fria
e o coração poder descalçar de sua pedestre armadura
e testemunhar na praia a memória futura.

Quando de novo formos a ser vistos pelo mar
que lá estejas é tudo o que peço
tudo já tive e nunca pedi
senão que estiveras quando eu já não.



II

Tenho tanta pena de mais vezes não nascermos
está hoje uma tarde convocatória de todo o ouro
a luz é tão bonita que um gajo sorri sozinho
como fazem os tolos como as crianças fazem
como às vezes saltam os animais benignos no monte
e os peixes felizes e amnésicos à flor do oceano
e os cavalos imaginários das infâncias solares
como a minha foi quando eu nascia todas as manhãs
às vezes a Lua demorava-se manhã acima
como uma memória futura um sol de cal
e as árvores inclinavam-se em lapiseiro capricho
e no inverno as cheias davam um pouco vontade
de morrer de beleza de feliz desgraça de pobreza
quintas e casarios fumavam lenhas e ceias
o sino da igreja aportuguesava o Cristo local
e todos os pais eram vivos e trabalhavam e eram fortes
e todas as crianças ovelhavam pela erva das colinas
os velhos usavam chapéu e olhos sábios
de mochos oitocentistas ilustrando bosques falantes
longe o mar subia à paleta vidraceira do céu
peixes e estrelas dividiam a religião do infinito
o meu corpo não era ainda espermático ou licoroso
o teu também não que eu sei basta fazer as contas
acontecia-me nascer de noite também
quanto mais chovia mais eu renascia
de olhos fechados na cama aberta pela Mãe ouvindo
o aplauso infinito da chuva ao drama do mundo
o infinito drama do mundo das crianças ouvintes
da chuva desolada desoladora e tão gaiata
como uma criança nua havia-as muito no meu tempo
descalças no esterco dos animais de tiro da agricultura
infectadas de moscas e de alcoolismos fundadores
algumas rebentavam do coração numa aflição de pássaros
desasados de golpe pelo gato da miséria patriótica
comecei a desnascer mais e mais a partir delas
dei por mim aos dezassete anos nos bailes do Clube
a música eléctrica entrava no corpo tal formigueiro
líquido era o perfil das raparigas de febras enjauladas
em gangas causticadas de lixívia e primeiras
menstruações aromáticas em fissuras de caramelo
começou então no mundo a desinstitucionalização da eternidade
os homens de chapéu tiravam o chapéu e deitavam-se nos caixões
chorados com violência por filhas e cães muito magros
o sino cantava poemas mais lentos dessa lentidão
que crava as unhas fundo no coração
desapareciam as infantis ovelhas das colinas
umas iam para serventes da construção outras para oficinas
a minha Mãe teimou que eu haveria de estudar
o Século de Ouro da Poesia Espanhola por exemplo
a Porra dos Verbos Franceses a Implantação da República
Capelo & Ivens Gago & Sacadura Stanley & Livingstone
Dr Jeckyll & Mr Hyde Marie & Pierre Curie Holmes & Watson
Bucha & Estica Yourcenar & Mishima Nascer & Morrer
à noite revisitava o meu quarto em velório de livros
no pátio os cães rondavam como sentinelas envelhecidas
aos poucos os anos tornaram-se muitos dei-me à corrente
autocarros opúsculos crepúsculos botânicos tabernas frias
nunca percebi fosse o que fosse da minha cidade
na gare rodoviária os bolos eram fritos a gasóleo
os choupais eram devassados por ciganos e homolheres
já então a tinta-da-china das matas me matava
de rendilhada beleza litográfica eu ansiava de lápis
na mão nos olhos no corpo que se me erectava
de concupiscente paixão pela pobreza de viver tanto
enquanto já tão pouco renascia digamos assim
dei por mim amando mortos coleccionando almas
expostas em ouro ao sol de tardes assim agora depois
no monte à flor do oceano entre fábricas autocarros
tolos e crianças sorrindo sós.



III

Os olhos cheios de água do mar
orlam do olhar a condição litoral
um homem maduro suporta mal
o sal que enxuga o mesmo chorar.

Por exemplo raparigas ou cães
tidos e perdidas em baías ágoras
cruzando o manso terror da dissolução
uma noite de inverno manhã de verão.

Textos: manhã de 9 (I) e tarde de 8 de Outubro de 2007 (II e III).
Pintura: Monge à Beira-Mar, de Caspar David Friedrich.

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Canzoada Assaltante