Deixei de praticar a fisiognomonia durante o raspar da barba por me ter cansado de um rosto que precisa de um espelho para existir.
Tenho, desde então, uma cara, mas não um rosto.
De mim, dir-vos-ão talvez os meus vizinhos que sou um homem solitário e educado. Isto é: um pacato. Ou talvez mais certeiramente: um idiota manso.
Não importa. Nada importa. Nascemos, representamos e morremos. Todo o funeral sepulta um actor.
Foi por ócio que peguei na caneta e abri o caderno. Não espere ninguém que faça ao coração o que fiz ao caderno.
Está a chover, são quatro e um quarto da tarde. Irrelevante, indicar que tarde de que dia de que ano. Há muito que a tarde e a chuva se fundiram no mesmo a-tempo: a minha vida.
Levo a mão à boca e tusso. Expectoro uma pérola de resina tabágica. Olho a pérola. Livro-me dela na barriga da perna da calça esquerda. A mão que levei à boca era a esquerda: escrevo com a direita.
Moro num apartamento indiferente. A cidade é um pouco suja.
Moro num apartamento, mas adormeço na cabana da montanha, fora e longe de tudo isto. Lá fora, os autocarros imobilizam-se em penedos. Os reclamos luminosos sangram na neve. Os meus vizinhos tornam-se lobos e lebres, falcões e veados. Acordo no apartamento.
Não conheço ninguém, só reconheço. Não odeio as pessoas, limito-me a não amá-las.
E não tenho Deus. Uma igreja pejada de gente parece-me mais vazia do que quando vazia de facto. Sigo o meu caminho.
É claro que também os outros (como vós) não têm rosto. Há quem dê a cara, há quem nem isso. Certo: não importa.
E no entanto anoiteço na cabana com um rosto de mulher no ecrã de pensar nela. É rosto de olhos cuja cor varia, corredia e rápida, como a cor do lago ao correr das nuvens tocadas pelo vento.
Parou de chover. Pelo intervalo das letras vermelhas pintadas na montra da hamburgueria, consulto as poças de água da chuva.
Agora: um raio de sol esfaqueia o tecto de nuvens e beija-nos. Arrepiada, a luz envidraça-se toda.
Comi fritos: asas de frango e palitos congelados de batata. Bebi coca-cola. A chuva cercou-me, deixei-me ficar. Abri o caderno.
Não é com o coração que vejo o rosto dela, na noite da cabana. É ela a fitar-me, mais do que eu a ela. Como tanto pode ser mãe como amante, não é nenhuma das duas.
É só uma mulher de caleidoscópicos olhos. Uma branda ironia torce-lhe ao de leve a boca verde. As mamas são de mármore. Do delta sangra tinta azul.
Texto: Caramulo, noite de 21 de Abril de 2007
Fotografia: Caramulo, manhã de 5 de Junho de 2007
3 comentários:
Um texto digno de uma noite de Abril. Inspirado e inspirador.
Li o "Todos os Rostos", nem sei se não terá sido conselho teu... não, até penso que foi do Gil Moleiro. Belíssimo. Como a "re-escrita" em súmula, aquilo pela mão firme de um outro grande escritor (fica bem gabar o dono do blog, que foi - e é! - meu professor. E ainda por cima é verdade), o nosso irmão Daniel!
Estive afastado do barulho que ACERTadamente fizeste acontecer. As características dos intervenientes são bem conhecidas, toda a gente sabe que o Zé Rui é "um pintas" que se safa sempre muito bem, todos sabem que tu sempre foste um gajo excelente que foi apanhando a parte azeda da festa... luta com essa tua força, mas com objectividade. Precisamente, para que tenhas mais força. Como sabes, este nosso mundinho é dos "espertalhões", e aí, supostamente, ficas a perder. Supostamente...
Mas não fiques, desta vez, carago!
Nuno Gabriel
Magnífico!
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