30/06/2007

Baile no Parque



Por esta não estava este most sincerely yours à espera. Quero dizer, escrever e publicar, hoje, o mais quer-que-fosse. Levantei-me antes das sete da manhã, trabalhei alguma coisa, passei e bloguei os textos anteriores – tinha o dia, se não ganho, pelo menos não perdido de todo. Coisa das dez, dez e tal da manhã, eu e a minha veciclete fomos tomar café à pastelaria e, depois, ao minimercado, onde, não sem certa glória, adquirimos verduras, uma gasosa de dois litros e onde, ainda e também, encomendámos um frango assado para o almoço. Frangámos num parque mínimo e alternativo deste Caramulo formosíssimo onde depositámos, há um ano e sete dias, as almas e os esqueletos. Tudo fino, portanto. À tarde, sofámos com distinção perante um televisor povoado das americanices beócias do costume.
Por alvores da tardinha, porém, deu-me para sair, no intuito desportivo de assimilar umas dinamarquesas no centro da vila. Assim fiz. Fui, cheguei, assimilei – e deu-me para isto: havendo, a pretexto de S. Pedro, baile marcado para o parque em frente de minha casa, calhou-me a Musa escrever uma coisita qualquer assim a modos que de raspão à coisa. Escrevi. Era um poema, olha a novidade. Mas depois veio-me a ideia de chamar-lhe Cartaz. Foi uma porra. Desatei a escrever canções para um imaginário baile clonado do real. O conjunto chama-se Baile no Parque. Por esta não estava eu, o mais sinceramente Vosso, à espera. Mas pronto. Está feito. Siga o baile.

Baile no Parque
– canções para a festa

Cartaz

Há baile no parque.
É a última noite de Junho.
Vinho e sardinhas chamam os poucos vivos.
A música é uma atracção irresistível para
as décadas de mortos da Tuberculose.
Não irei ao baile.
Ouvirei o baile.
Não por receio dos fantasmas: vivo deles, afinal.
Não vou por melancolia.

O sol do dia resiste como pode ao
vento que empurra o céu pelas costas.
O nevoeiro cai de peito na vila.
Testes de som tossem electricidade
além do arvoredo.

Uma questão de vila e de morte.

As horas agrutam de música o coração.



Canção nº 1
(cantor mais saxofone-tenor, acordeão de botões, bombo, tarola & pratos)

Lembra-te, Aninhas, do mal o bem
que vivíamos, apesar e porém,
do muito que tossíamos,
lembra-te, Aninhas.

Dedo a dedo as mãozinhas,
passo a passo as perninhas.

Dois dias nos separaram,
fulgor breve da hemorrosa,
adormecendo consagraram
eternidade maravilhosa,
ai Aninhas, maravilhosa.

Dedo a dedo as mãozinhas,
passo a passo as perninhas.



Canção nº 2
(cantora mais guitarra, contrabaixo e reco-reco)

A sardinha é tão bonita
seu dorso é tão azul
seu perfume nos incita
a ser povo norte a sul.

Nosso vinho com franqueza
alegria é sem rolha
luz e cor da nossa mesa
santa parra santa folha.

Nosso pão o mais honesto
que um dia alguém serviu
quem não goste seja lesto
vá na puta que o pariu.
(Atenção: no caso de o público instante inchar de severa percentagem geriátrico-católica, o último verso deverá ser: "volte à mãe de que saiu".)



Canção nº 3
(cantora e cantor mais trompete, órgão e tarola de gaiteiro)

Ai há quanto tempo a alegria
de nossas faces descorava
quem na chamasse de dia
’inda ela à noite tardava.

Ai quantos anos meus amigos
faltam ’inda a passar
vida é casa sem postigo
só se a morte a iluminar.

Ai eu quantas tantas horas
por ti tristeza esperei
que viesses a desoras
não vieste bem no sei.



Canção nº 4
(cantor mais clarinete, bombardino e tuba)

Dá-lhe a chupeta
se não põe-se ela a mamar
papas da tua cabeça
até ela se fartar.

Dá-lhe a maminha
se não põe-se ela a chupar
a cantar-te a rã-caninha
só p’ra bem te enganar.



Canção nº 5
(cantor mais pífaro, ferrinhos, cântaro & abano)

Diz lá tu ó Madalena
se co’ Manel vais casar
não casas não tenhas pena
tens bem mais p’ra enganar.

Ó riqueza destas eiras
viras ó moço a cabeça
casa com quem te apeteça
ó princesa das solteiras.

Rapariga moça
de vento na saia
nunca te descaia
vintém nem tostão
Moça rapariga
juízo é preciso
que a falta de siso
’inda te castiga.

Diz lá tu Maria Rita
s’ isso com o Zé é sério
dos olhos com qu’ ele te fita
ou igreja ou cemitério.

Não lhe ponhas tu na testa
duplo par brancos chavelhos
só por ti ele vem à festa
nem que fosse de joelhos.

Rapariga moça
de vento na saia
nunca te descaia
vintém nem tostão
Moça rapariga
juízo é preciso
que a falta de siso
’inda te castiga.



(Intervalo para os músicos irem ao bufete;
oportunidade para versos sérios como os do cartaz:)

Versos Sérios como os do Cartaz

Não bailam os mortos senão em
lembranças.
Algumas crianças:
para elas, não
houve clero ou pneumologista
os suficientes.
Vivas ideias, mortas gentes.

No baile do parque, rondam de novo
os antigos chapéus-sombrinhas, as
celibatárias gravatas de militares
demasiado novos para morrer sem
ser na guerra.

Carros negros, pesados do dinheiro
das famílias ricas, doutores e futricas,
ânsias e saudades as mais
premonitórias: donas Jacintas,
Gencianas e Gregórias,
senhores Alvarez, Durães ou só
Santos.

Só aos desatentos são estas ruas
vazias,
este parque fundado num
húmus chamado memória.

Os livrinhos de Mercedes Blasco,
escritos em pleno desemprego da actriz e
depois da morte do filhinho na Bélgica,
onde ela se vira sitiada pela
I Guerra Mundial,
tiveram por aqui muito sucesso,
sobretudo nas mãos transparentes
das tubersenhoras e dos
hemocavalheiros celibatários
que recitavam sonetos
a si mesmos,
no parque.

Por isso não bailam.
Dizem sonetos como se ouvissem música.



Canção nº 6
(cantora mais violino, violoncelo e fagote; atenção: canção-lembrançomenagem dos tuberculosos que foram a saúde financeira da vila sanatorial; a cantora canta como se fora um deles)

Borboleta dias voa
três ou quatro nenhum mais
traz-me o amor de Lisboa
mais linda das capitais.

Pardalito lusitano
vem trazer-me à cabeceira
semente do novo ano
para a minha vida inteira.

Voadores filhos de Deus
aos céus vós anunciais
vida e morte adeus, adeus
adeus até nunca mais.

Oh mariposa nocturna
não te queimes nessa vela
queimas-te se fores diurna
só de noite tu és bela.

Gaivota desencontrada
minha saudade do mar
praia mais petrificada
na montanha vens achar.

Voadores filhos de Deus
aos céus vós anunciais
vida e morte adeus, adeus
adeus até nunca mais.



Canção nº 7
(cantor e cantora em marchinha para piano solo)

Que entrem todos / nesta marcha de encantar
passo firme é a vida / que morrer é tropeçar.

Bem-vindas todas / solteirinhas e casadas
todas as horas são bodas / alegres e festejadas.

Mesmo que o Junho acabe / vai ser nossa salvação
Julho seu filho é que sabe / todo cabe no Verão.

Esta noite não tem fim / fim tem quem não começou
vou por ti vem tu por mim / pois só por ti é que eu vou.

Marchem também os defuntos / que daqui nunca saíram
todos juntos somos muitos / que os cegos nunca viram.

(Voz extra: “ e que os surdos nunca ouviram!”;
gargalhadas mistas de vivos e mortos.)

Nossa terra linda serra / serra mais linda não há
já fomos a muita terra / guerra a quem ach’ esta má.

Mesmo que o Junho acabe / vai ser nossa salvação
Julho seu filho é que sabe / todo cabe no Verão.

(Repete e acaba; primeiros sinais de bebedeiras e bulhas; mulheres e mortos desandam embora; eu também, que nem lá estive: não há mais versos para ninguém; a partir de agora, e até de manhã, só cassetes.)


Caramulo, tarde, arrefecendo, de 30 de Junho de 2007

2 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

Daniel, meu amigo!
Tens poesia e talento, e vice-versa, para dar e vender. Fora outro o país...e os teus livros seriam badalados em substituição de uns quantos que nem badalos têm!Olha, saiu-me assim...
Um abraço.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Proposta para mais um poema de baile (ouve-se ao longe o último leilão, já o conjunto empacotou a aparelhagem na Ford Transit)

No regresso de Tondela
De vinho enevoados
Parámos junto à capela
Soltámos gases cansados
E sobre a estrada silente
Mijámos idosamente.

Abraço!
QJ

Canzoada Assaltante