11/10/2005

Relatório Matinal

o verão que pendure de vez as botas
assim está-se bem
o ar já não é amarelo-febre
é cartão-caixa-de-sapatos
é humano viver de novo
claro tudo isto é relativo
a caminho do minimercado
a comprar fiambre
vi uma senhora à janela
entre cortinas gázeas seu rosto clássico
flor de prata antiga
talvez esperasse o sol que despedi
talvez esperasse o outro verão
o verão 1943
em que terá sido feliz
não sei
numa casa abandonada
no extremo baixo das escadas
vi dois gatos infantes
comendo arroz de alguém e de ervilhas
dois animais vivos no susto demorado da infância
depois vi um pederasta de gabardine
ao balcão do totoloto estava
tentando a sorte os milhões outra vida
como se esta não fosse a única
tinha óculos fumados
olhos fumados
dedos de nicotina
mãos de menina
não tinha grande saúde dentária
tentou sorrir saiu-lhe azul-cárie o ricto
boa gabardine porém
de detective sem crime
pá perna costela acém
de cachimbo sem lume
de membro sem receptáculo
de pilinha sem furinho
de cu de menino
eu não joguei o totoloto
aposto pouco deve ser da idade
do tempo caixa-de-sapatos
ou do sol quando faz sol
queixo-me em silêncio só para dentro
de uma perna
distendeu-se-me um tendão
como uma toalha mole
talvez volte à piscina
a molhar o bacalhau
se bem me lembro era bom
dentro de água o corpo natatório
e cá fora chovendo
a chuva municipal da província
o corpo dentro do azul-cloro
e cá fora chovendo-claro
as casas antigas com senhoras clássicas
à janela
entre gazes
olhando 1943
acabei por comprar o fiambre
oito folhas dezasseis páginas
uma porcina literatura translúcida
que li com os dentes
enrolei em suco digestivo
assimilei sem esforço nem glória
a caminho deste relatório
que escrevo sobre baquelite
enquanto fumo um cilindro de palha
foi-se embora o pederasta
ficou a senhora da lotaria
tem uma filha pequena
como ela flava como ela fulva
gatinha ruça pequena a vulva
que conta até dez
como se fora no circo
e a tarola da orquestra rufasse
o sem-rede da vida
pequenina de quatro cinco anos não mais
delgada como uma anchova branca
um arenque de sapatinhos vermelhos
e eis que chove
a fina chuva humilde do nosso país fadista
ainda há gente de manga curta
não está frio está-se bem
é bom entristecer sem dor em outubro
alma-caixa-de-sapatos
clemente cançoneta na tv
uma canção de amor sacudido a palmas
nas portadas de vidro do banco
cartazes com a cara do rapaz do gato fedorento
estanhado de água o alcatrão das ruas
os pneus fazem frufru de saliva de borracha
uma pomba gástrica pousa consolada
num telhado pintado de tijolo
a mulher do sul o homem do norte
a terça-feira muito estabelecida
muito esponsal de sua pluviometria
ainda a vida mais um dia
amor de mãe angola 1967
moçambique 1971 I-love-e-um
em casa arrumadinhos
os autos de gil vicente
as tragédias de sófocles
e a lata de ovas de bacalhau do intermarché
recordo um corrimão de madeira
que raspei envernizei num outroutubro
foi há quatro anos
o tempo que fazia era o de hoje
estão as pontes atiradas
2001-2005
um rio sobre elas corre
a pessoa atira o eu ao mar
deriva à flor das águas como uma cortiça
com um galo em cima
também eu senhora
tenho o meu verão 1943
quem o não tem
não é filho de boa mãe
olhai-me esta árvore
negra de tão verde
pinga cachos de sementes
pluvigotículas lhe pranteiam o perfil
assombrada visão verdenegra
sobre chumbo de céu
automóveis prateados como sardinhas
dormem o sono tecnológico de aluguer de longa duração
enquanto não retornam seus amos bancários
que trabalham no reverso do rapaz do
gato fedorento
a perna está-me melhor obrigado
cozinho às vezes rins em cerveja
alho banha colorau sal
marlon lume lume brando
banho-maria-das-dores
senhora-dos-aflitos
gritos de cães enjaulados na noite de correntes
memória e ablução
história e absolvição
a maria-da-fonte não foi por sindicância
nem comunismo
foi por superstição
não queriam os mortos enterrados
em salubre cemitério
queriam-nos na igreja como santinhos de pèdropeito
revejamos a história a memória a ablução a absolvição
rommel suicidou-se à força
e churchill sim também era
racista
não fosse ele inglês
tudo existe ao mesmo tempo
o tempo de resistir é outra história
o tempo dos verbos é o mesmo tempo
só que de outro modo
conjuntivo indicativo não interessa
imperativo é-o ele sempre
havia o diário de lisboa
o dinis machado molero rapaz
a chuva de 1935 quando morreu pessoa
o verão 1943 daquela senhora
pessoa finalmente liberto/a
escravidão do inefável
heterónimo como uma abelha
todavia fado
tiraram-nos dos prazeres
que aliás não fruiu
depuseram-nos nos coisos jerónimos
pobre tia anica pobre ophelia
1888-1935
parece pouco visto daqui
tinha parado de chover
voltou a
agora mesmo
está-se bem assim
no cinzumbre
a meninarenque vai almoçar
rissóis de caramelo com salada de legos
ela conta as folhinhas verdes
diz que quer mousse instantânea como ela
é 1943 agora para a menina
manhã acabada
fiz o meu relatório
a ninguém devo nada.




Tondela, manhã de 11 de Outubro de 2005

2 comentários:

SDF disse...

Depois deste rol todo, não se pode dizer que não andes em maré-alta de produtividade.

Quanto ao resto... bem, já nem me atrevo a comentar...

Daniel Abrunheiro disse...

Do not worry, my dear friend.

Canzoada Assaltante