115. CONCOR 5 mg + DAFLON 500 mg
Coimbra, quarta-feira, 10 de Novembro de 2010
Como desde sempre é para o chão que olho em vez de em frente, as cabeçadas em postes e sinais de trânsito acontecem-me quase tantas vezes quanto os achamentos de lixos e de papéis escritos. Por um destes dias insalubres e solitários que vou e venho vivendo, baixei-me para colher da rua um fragmento literário de cuja veracidade monumento-documental deixo prova mercê da colagem ao presente manuscrito do dito papel.
De um lado (salvaguardo com XX dados pessoais):
GUIA DE TRATAMENTO PARA O UTENTE
DADOS DO UTENTE
NOME DO UTENTE: XX XLIXXX XX XX
N.º CARTÃO UTENTE: XXXXXXXXX
TELEFONE: 239XXXXXX
ENTIDADE: ADSE
N.º BENEFICIÁRIO: 006XXXXXXXAP
DADOS DA PRESCRIÇÃO: CS CELAS
MÉDICO PRESCRITOR: AXXXXXXX XOXXXXUXX
MEDICAMENTOS:
CONCOR 5 mg Comprimido revestido 5 mg Blister – 28 unidade(s)
DAFLON 500 500 mg Comprimido revestido 500 mg Blister – 60 unidade(s)
No verso da prescrição clínico-medicamentosa, presumo que a própria utente (uma senhora, sim) se prescreveu a si mesma a seguinte guia a tinta preta:
Ervanária
1 caixa pastilha (caixa rôcha)
D. Céu
1 pão de mistura
Peixaria
2 postas de salmão
Acontece que este achado me enternece. Tornam-me vívidos, vividos e reais a Cidade e o Mundo. Tenho feito muitos achados assim. Todos me movem, comovendo-me todos. Isto é a realidade. A minha é, pelo menos. Claro que este papel não é lixo. Este papel é Alice-Procura-Dono. Siga-se poema de/para este papel:
Alice procura dono, COFLON.
Alvíssaras pela minha vida onde a trovardes:
morrer é mau, viver é bom,
mas o contrário também, depende das tardes.
*
Colei o papel achado ao caderno (cf. p. 657). Bairro Norton de Matos, que antigamente foi (do) Marechal Carmona – alguma justiça toponímica na História-Pátria-das-Ruas-de-Coimbra, apesar de tudo. Na Sé Velha, rezam ainda, cada ano, missa aniversariante ao velho Estado-Novo-Salazar-Salazar-Salazar. Vezes há em que me sucede (como agora mesmo, that’s the spirit) perten-ser à/da História: um rapaz avelhentando-se, de casaco de cabedal castanho e calçado preto extremado a ponteiras de aço, por ruas e bairros sem mais nada que fazer senão inventar e/ou achar papéis, de 5 e/ou 500 miligramas. Peso da minha vida miligramática: nascer a 500, morrer a 5. (De que mês, I wonder.)
Bate devagar a solaridade na Praça Infante D. Henrique, esse (também) tomador de Sagres. Trata-se (atenção!) de um solário de pobres: cercanias e imediações são escassa e esparsamente povoadas de aposentados dados à reumo-lentidão e a ideários de Coimbra, de esborciadas palhetadas a tintura de madeixa que umas contra outras disputam aperfilhações, de poetazitos dados à mansidão alcoólica em ponteiras de aço, de músicos sem diapasão nosso de cada dia, de receitas sem doutor nem alice, de quem-é-que-diz-quem-foi-que-disse.
*
Pela calma das tardes volveremos ou não
a quanto foi quinta e ínsua e Verão.
O músico trova pelos campos, acha um pouco de broa.
Ao longe, a moagem chia o pão.
Isto são campos de água, trevos, silvamadres.
Aquilo, laboratórios de cal causticando famílias.
É a mó das gerações, as cópulas no escuro,
os ovários do povo-fêmea esferovitando pedreiros.
São os amieiros.
A linha da vala corre óleos furta-cores
(há oficinas perto ainda, ainda fábricas) – e
à União Europeia faltam tantas décadas
para Portugal, este dos corredores a pé,
os subassalariados da recta da Adémia,
o vento feito de cheiro de choupos,
as galinhas afogadas nas cheias
devoradas sem calma pelas ratazanas,
essas nadadoras olímpicas e leni-rienfestales.
É estranha (dada a natureza nossa
de compradores de iogurtes) o quão
devagar apodrecem as cabeleiras das senhoras,
mesmo as egípcias, mesmo as assírias &
alvins.
Também é estranho não amar.
É estranho amar mal e alguém que,
fazendo-se embora ninguém, alguém
segue sendo,
como no caso de Cristina Lavransdatter,
uma criação de Sigrid Undset de 1910-1-2,
que volverá ou não,
derretida a neve
em pleno Verão.
*
Desvelo-me devagar as cortinas gázeas.
isto da minha vida é esta vida minha.
Tenho reescrito as tais mesmas várzeas
por que meus ancestros d’arábias e ásias
as fizeram suas na indiana linha.
Nov’ & velho se ardem acima do Sol,
que é centro tudo e tudo arrebol.
O mais que direi? Preço das sapatilhas
que este Natal hei-de dar às filhas.
*
Os dias são tão úteis quanto os gatos.
Maus tratos sofrem as gentes não vivas.
Recidivas parecem as votivas
belas velas queimadas por os ratos.
À luz do azeite padece a menina
que, bela, nasce em a luz encarnada:
e o casal que a fez, a fez amada,
chamar-se-á Maria e/ou Cristina.
O resto é tudo palha de centeio,
é o tratar da quinta, das moagens.
Não vivas por imagens, que no meio
alguém muito feio tirará vantagens.
Do tudo que te disse, esquece, Alice,
o tudo que falei e, gato, disse.
Sem comentários:
Enviar um comentário