Mátria e míngua
A minha mátria é a míngua portuguesa.
Perdoar-me-eis a paráfrase pobrezita, embora ela até reforce a indestrutibilidade do tão justamente célebre verso de Fernando Pessoa. Mas assim me sinto mais e mais a cada dia que passa. A mátria e eu andamos como cônjuges que continuam a amar-se depois de separados. Ou como os mutilados que continuam a sentir a perna perdida dias, meses, anos depois de rebentada a mina antipessoal em que esta corja (e a anterior; e a que vier a seguir) transformou o Estado.
De míngua vos falei já muito e muitas vezes. Da mátria, também. E tenho pena de não vos fazer sorrir mais vezes com frivolidades, gracinhas & graçolas, futebóis de cebolada, casamentos gay & divórcios bissexuais, bacoradas lusofonamente correctinhas sobre a solidariedade para com, por exemplo, os pobrezinhos de Angola (essa hidra corrupta que putrificou por completo a utopia gentil e justa de um Agostinho Neto). Ou então, de vos não atrair a luz dos olhos com crimes repelentíssimos, dos de rebarbadora na gorja aos das gasolineiras, dos que metem violações perdoadas à partida pelos tribunais e dos que enformam essa coisa capciosa, tortuosa, encardida, deslavada, ignara, mesquinha e próxima chamada Poder Local.
No fundo, peço-vos desculpa por não ser o Correio da Manhã. Ou telebrasucanoveleiro, vá.
No fundo também, esta mágoa de, ainda assim, com tudo isto todos os dias embora, ah sim, eu amo-a. Não à míngua, mas à língua, a tal que é pátria. O mesmo é dizer que amo a mátria no que ela tem ainda de soalheiro, de marinho, de profundamente pessoal: o tanque de lavar a roupa no pátio com laranjeira, as revoadas de crianças-andorinhas primaverando as ruas por onde passam, a cortesia dos velhos nas lojas, o funcionário público sério e disponível, o polícia ataviado e correcto, o professor dedicado e sofredor, os pescadores, os agricultores, as senhoras dos quiosques contando cêntimos e acontecimentos de rua – os Portugueses, enfim.
Amo, sim. E ao menos isso, nada minguadamente.
4 comentários:
também tenho algumas nauseas pelo conteúdo dos entretenimentos e filosofias de vida que estatísticamente são mais significativos (só isso e nada mais). Também sinto repulsa pelo novo feudalismo vigente e pelos ideólogos que o inventaram e dele se alimentam.
Sou um habitual visitante do blog. Foi-me recomendado por um colega de trabalho e amigo (mútuo, assim o creio), Joaquim Jorge Carvalho.
Bem-vindo, Albino. Obrigado pela visita.
Como é teu costume, mais um excelente texto e um olhar muito lúcido sobre esta realidade que (literalmente) nos cerca. Contra a corja d'aquém e d'além-mar, sempre - e que não te doam os dedos, companheiro.
E porque o que faz falta é agitar a malta, com certeza não te importarás que peça emprestados estes versos ao Zeca Afonso para, abusivamente embora, tentar complementar o que dizes:
Sou duma vaga pátria carinhosa
A de sempre me ver filho das dunas
Molhando os pés no frio das espumas
Carpa mordaça toldo mariposa
Velho litígio rompe das entranhas
(Saí ainda novo das escolas)
Bonzo que me ensinou a ver as horas
À beira rio me contou patranhas
Eu sempre tenho dito tenho dito
Que já não se ouvem pássaros como outrora
A gaivota não vem à luz da aurora
Soltar o seu estranho e agudo grito
Tenho uma pátria póstuma de grilos
(Tu descias amor uma alameda)
Caem-me em cima cheiros de alfazema
Duas gotas de chuva nos mamilos
O abraço de sempre.
Quanta honra: Viriato e Zeca ao mesmo tempo!
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