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166. MÁQUINAS (FU)R(I)OSAS
Coimbra, segunda-feira, 14 de Fevereiro de 2011
Que as minhas feridas me curem.
O tempo me não apenas mate mas viva.
As ruas não só alonguem o desamparo do passo.
Que ao cabo acabe de chorar.
Chove hoje, não há novidade, as pessoas falam do que chove, passam-se coisas de cuja trivialidade a memória futura não guardará especial recado. Que me curem as minhas feridas.
Escolhas e escolhos, nojos e despojos.
Navegadores sulcando a História, nomes mí(s)ticos: Delfos, Tiro, Cartago, Sabugal, Moimenta da Beira, Baltimore.
Que elas, as feridas, me eduquem.
As feridas: as vidas
adentro a exist(ess)ência.
Me cobrem (de cobrir, de cobrar) o letal,
o banal, o comercial, o ser de Portugal.
E a dor como espécime da euforia.
E cada noite e cada dia.
Sim, amor, que as nossas feridas
nos curem – e matem – e nos refaçam
em renascimento.
A pessoa está envolta de pessoalidade.
Os gestos arabescam cuneiformidades.
As estrelas indiciam a contemporaneidade
mútua mais cega: o gelo, o fogo.
Estou sentado num café vendo chover.
Toda a minha vida assim estive.
O que arde na língua, arde no olhar.
Isto é finalmente toda a verdade, minha querida.
O meu irmão comprou certo Natal um S. Pedro de barro. Eu estava com ele, fazia frio, as coisas eram acertadas, eu sentia-as. Éramos ambos vivos, então. Um dia, esta folha fica escrita debaixo das estrelas, das figueiras que demoram o leite e o mel.
E o gelo-fogo.
E a pessoa-pessoa.
Lavro livro.
É o meu trabalho, o meu pouco santo-ofício, profissão-e-auto-de-fé.
Que as minhas curas me firam.
Tenho escrito poucos poemas de amor porque afinal uma pessoa também precisa de comer. Não se pode estar sempre à varanda do coração. Mesmo as filarmónicas param por vezes, deixam andar, metem as gaitas no saco. Sou um homem revestido de roupa escura num café apagado como um moliceiro à chuva. Transito. Assisto. Musculo-me de clarões verbais. Sou quem vai tornar-se outro. (E isto tu percebes.) Sou o pecado e a glória e o rochedo de Brighton e verde e grão. Estive dentro de um menino com o meu nome completo: lá, em éter, no tempo dos cães e das figueiras. Mediterrâneo, Líbano, Lameira do Saramago, Sídon, Biblo, Ugarit, Arrábida. Abro-me em peixe, desovo o meu coração. Escrevo em temp(l)o. Faço-me pedra, primeiro. Depois, areia. Quando o ouro me visita, recebo-o em limoeiro. (As árvores citrinas incrustam o frio da noite estelar: caravelas pejadas do escorbuto futuro, querida.) Sei-te atenta às verdadeiras coisas: pois que não és eu. Sim, isto. As minhas mãos como máquinas-aranhas. A minha doença, isto de escre(vi)ver tão pouco. Tão poucas cartas de amor, amor.
De lados da serra vem chegando a massa de água fria. As coisas florestais existem druidamente. Aqui na Cidade, nós somos fontanários hirtos. Estou sentado num café de cu a pensar na cadeira. Assisto à minha infinitude estelar como se visse um filme do Stallone entre rapazes serralheiros. Isto tem muita graça. Quando hoje se fizer noite, já eu me a tinha feito. De lados da serra etc.
Tenho um amigo que está a morrer no hospital. Nada posso fazer por ele. Deixo-o escrito. E depois vós leis-vos-nos nele.
A minha Mãe é uma pessoa que está num Lar de Velhos. A memória dela é agora como a poesia: cutiladas oblíquas a desferem. E ferem também, suponho. A minha Mãe chama-se Hermínia. Esteve para chamar-se Maria Luísa, alguém acabou por decidir Hermínia. No Lar de Velhos, Hermínia não decide. Lavam-na, levam-na, alimentam-na, rodam-na, depositam-na ante o campo, aturdem-na de laranjeiras. Ela ri-se de piadas ditas de fresco há oito décadas. Está a subir aquela encosta nevada, álgida, onde os corvos são livres de lhe pousar nos ombros. Ela frequentou um homem chamado Pai. Nestas coisas da minha família, as coisas do olhar acontecem a castanho. Deve ter a ver com judeus ou galegos ou pardais. E os pardais também envelhecem. A gente não nota, mas sim. A minha Mãe sempre foi um Lar de Pardais, por isso sei bem o que digo, olha para mim a voar procurando o pão do verbo pelo chão da língua.
Ministro e administro a minha vida respiratória.
Argamasso os tijolos das locuções definitivas.
Bato mal da bola, esqueço-me até da memória.
Mas de mim nunca mais te livras.
Estou no teu sangue-leite sem ser por mal.
O Infante D. Henrique também deve estar.
É nada ser nado em nosso Portugal,
mas, pronto!, já está, nad’ há a mudar.
Conheço gente que exerce a vida com uma convicção de fazer a nêspera ter inveja da cor amarela. Trata-se de gente que considero profundamente. Como não ando aqui para enganar ninguém, acabo sempre por enganar alguém. (Mas aquele amarelo, caramba, aquela cor amarelenêspera…)
Extinto o amor, não se extingue sempre o afecto. Sei de catorze mil gajas capazes de concordar comigo.
A minha vida (por) agora é esta: conheço o senhor António e o senhor Joel, eles não se conhecem um ao outro – e eu conheço-nos aos três, excepto a mim mesmo.
Mas – bom dia, senhor António; bom dia, senhor Joel; bom dia, senhor Daniel.
Máquinas furiosas para confrontar a vida consigo mesma:
advogados do sindicato;
entendimentos pós-prandiais;
dívidas à Petrogal;
massa folhada com recheio de tomate, vitela, cenoura e bocaditos de dentes;
gravações do Codificador Enigma;
sonhos de Bill Gates;
notas de dez euros;
a senhora Magda Seteais tomando chá em Celorico da Beira;
um namorado para jantar-em-angústia-felizmente-há-luar;
o senhor Unamuno em Portugal;
um homem que vendia roupa cor-de-rosa com uma delicadeza de maneiras inultrapassável nem p’la esquerda nem p’la direita;
a barba do senhor João Sousa em, ou durante, uma tarde pluvial de Coimbra;
a aceitação.
(Quando escrevo coisas assim, é de sinais de trânsito que falo. Regras e sinais. A cor vermelha e a cor azul. O redondo. O triangular. A passagem. A passadeira. A máquina furiosa. Não, não! A máquina-língua-e-rosa!)
Toco o teu coração do lado avesso às finanças.
O Diabo pode ser evitado com o ensino da gramática.
A morte é de facto matemática, mas as contradanças
são pró-corações pouco dados a poupanças.
E eu toco o teu coração do lado avesso às finanças.
O Tempo me não apenas mate mas sobreviva.
Pessoas-ordenado-mínimas arrebanhando-se
em passagens de autocarros à boca da noite:
pessoas-rosas, pessoas-gladíolos, gardénias-pessoas
entregues ao estrume, à cesura e à tesoura.
Olha aqui uma coisa: as pessoas são especiarias,
cânforas de bolso-de-colete, cheiros de ponta-dedo.
Nenhuma delas deveria ter medo.
Nem de noite, nem nos dias.
Falo-te de máquinas furiosas, nada de mais. Temos por vezes frases trocadas que equivalem a pastéis feitos por freiras em dias de Deus sem ser maldoso nem por gozo. Vou agora fazer uma canção para o Luís M.
(CANÇÃO PARA O LUÍS M.
Tenho uma mulher que é rosa.
Outra tu tens no jardim.
Se uma é maravilhosa,
não tu mo digas a mim.
Passa o tempo. Acontece
a gente estar de namoro.
Tesouro é ouro, parece.
Mas só a rosa é tesouro.
Dá-me, amigo, a certeza
de que vindes cá jantar:
que as rosas são p’ra cuidar
e juntar à mesma mesa.
Nem tu mo digas a mim:
se uma é maravilhosa,
outra tu tens no jardim.
Tenho uma mulher que é rosa.)
São agora as 17h32m de segunda-feira, 14 de Fevereiro de 2011. No continente americano, preparam a desinformação-em-massa. Aqui também. Na Coreia do Sul e na do Norte, assam carne de cão. Em Coimbra, dentistas divorciados pensam se vão hoje ao bingo ou não.
Em quem a estimou e lhe sobreviveu,
a pessoa-eu tem de ter vivido.
Não pode apenas ter existido.
Não é possível sustentar as gasolineiras eternamente, de modo que um dia as pessoas morrem, o Universo finge mudar de sítio e acaba com o Carnaval. Os milénios são coisas que não podemos entender com o corpo, só com o olhar. As esferas astrais confirmarão o egipto-essencial da nossa condição. Pretendo por vezes (nem sempre, é verdade) falar-te da comunidade de esforços que presidem à pobreza do coração. O coração é pobre, querida. É rico, tem oiro, tem laranjeiras, tem laranjeiras.
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