Um dia em forma de talvez
Estou sentado num café a ver o que chove. É um dia sem nome. Tenho estado assim anos a fio. Quando posso, escrevo para não pensar. Para não pensar e para não sentir. Num café, chovendo lá fora, sentado ante as coisas mundiais. Em Portugal.
Os dias deveriam ter nome. Nome e perfume. Deveriam ter retorno, também. Não têm. Os dias são sem retorno. Crescem como musgo, fingem-se rochedos, acabam delidos em areia, às vezes é uma tristeza a vida ter dias.
Outra coisa é a acrobacia sexual com que o coração finge amar. Isto de fazer filhos contra toda a lógica. Isto de contrair dívidas e doenças. Isto em Portugal.
Sabes, às vezes sento-me num café mesmo que não esteja a chover. Assisto à violenta (e intrépida) beleza das pessoas. Quando, belas, como velas se apagam, eu digo assim coisa nenhuma a mim mesmo. Se posso, escrevo. Se posso, não penso nem sinto.
É quarta-feira de um ano qualquer, ontem, hoje e amanhã, como na canção do Zé Cid. Aquele homem ali, aquele de jaqueta castanha, parou o olhar num prospecto imobiliário. Aqueloutro, o de verde, semiabre a boca onde uma cremalheira acrílica sofre nostalgias dentais. Aquela senhora ali, a de botinas de napa com filete de chapa, parece uma prima-basília prontinha para infidelidades telenovelescas. E aqueloutra, coitada, é de uma flatulência verbal que lhe desmente o viço das mamas e o vício da boquinha tão dada a pastéis-de-nata.
Num café português a ver o que chove em Portugal. Curvam as árvores a cervical. Os últimos cães farejam pardieiros ocupados por homens tóxicos. A noite, não tarda, é manhã. E eu só lamento o futuro, o resto não.
O resto, não.
O rosto, talvez sim.
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