Viseu, 21 de Março de 2008
Sexta-Feira Santa com a Primavera no bico.
Oito e picos da manhã, um sol largo como uma rosa no frio muito puro.
Ideal para aquecer os joelhos na esplanada do Rossio.
Uma bela chávena de chá de limão, um saco cheio de pão.
Não trouxe livros: a manhã é para ler.
Passa um rapaz de barba suja, os dentes estragados.
Vai a sorrir-se sozinho de qualquer coisa: parece um poeta (pelos dentes, não pelo sorriso).
Está ali um senhor polícia.
É uma cara fechada nos óculos escuros.
As pernas afastadas em posição de mola-da-roupa.
Coitado: Sexta-Feira Santa e ele ali, sem poder escrever um poema em prosa.
Vale-lhe que aquece os costados ao sol da rua.
Chama-se Rua da Paz, a rua: tem um polícia e dá-lhe o sol.
A fonte redonda canta água.
Em torno dela, flores disciplinadas por remoto jardineiro municipal.
Abre cedo, o quiosque dos jornais.
Uma placa de cabeleireiro: Salão Azul.
Ando aqui sentado a ler a cidade.
(O Rui nasceu aqui, mas não foi hoje.)
Uma excursão de espanhóis.
Empoleirada num banco da praça, a guia ora.
Um correctíssimo cavalheiro de correctíssimo jornal desportivo.
Não sei o nome dele.
Vontade de levantar-me, chegar ao pé dele e fazer este verso:
– Bom dia, correctíssimo cavalheiro do Record, como se chama?
Não é boa ideia, apesar do sol, da água, do saco cheio de pão fresco.
Agora, além, uma correctíssima dama de luvas de couro.
O castanho das luvas mais escuro que o do casaco longo (mel, digamos).
O chá povoou-me a boca da possibilidade de ter mordido uma árvore.
(Abandonei por momentos a mesa da esplanada, que é vermelha, fui lá dentro beber um copo de água, a rapariga do balcão estava a ler um livrinho católico. Isto aqui em Viseu fia fininho.)
Chá e água no bucho: olha se me tivesse portado sempre assim.
Estou suspenso em doçura: como um feto velho no ar amniótico.
Passa um Veículo Equipado com Ar Condicionado.
Agora, um casalinho de adultos pequeninos: algum café deve ter ficado sem dois matraquilhos da mesa das traseiras, entre grades e vasos de jardineiras.
Ociosa fila de táxis e taxistas: coitados, parecem-me sempre guardiães de Salazar.
O sol nos joelhos, nas coxas: um consolo de gato redactor.
Aquele rapaz além: patilhas rapadas a navalha e um casaco como nunca hei-de ter.
O senhor polícia cruzou a rua, veio tomar café (não sei se está no Regulamento).
Agora, um cidadão conversa com ele.
Talvez falem do que leram ontem: o cidadão, Aquilino Ribeiro, decerto; o senhor polícia, T.S. Eliot, só pode.
(Às vezes, amo a vida de propósito.)
Olha, olha, outro belíssimo casal – ele é pequenino também, ela é de uma largueza de cómoda de quarto.
Ela empurra brandamente um carrinho com bebé dentro.
Ele olha em torno, vigilante como um patriarca mínimo.
Todo o cuidado com os filhos é pouco (sobretudo antes de feitos).
Olha, estou a sorrir-me: dentes estragados, pareço um poeta.
Acho que é proibido dar de comer às pombas, mas já ripei um bocadito de pão e daqui a pouco, à passagem para casa, deixo cair as migalhas aos pés delas.
A terra rodou, mudo de mesa para um pouco mais de sol.
Explico a manobra ao empregado.
Ele diz:
– Tudo bem.
E está, realmente: está tudo bem.
Extraordinário: há pouco, atirei uma migalha para o chão.
Havia pomba nenhuma.
Uma acaba de filar o bocado.
Já tem outra a disputar-lhe o tesouro.
Olha: já arrulham, contrariadas.
Estas voadoras não conhecem dias santos, pois que todos lhos devem ser.
Os automóveis acordaram.
Passa o camião dos Talhos Irmãos Oliveiras: estranha coisa, em dia de comer peixe.
Passa um carro fúnebre vazio atrás: temos de esperar por Domingo.
Falta pouco: não sei para quê.
Solto uma escarróbia no guardanapo de papel, embrulho discretamente a prenda, é uma bolinha molhada ao lado do caderno.
Passa um velho com uma saqueta de parafusos na mão: que se terá desprendido da vida dele?
Isto é tudo muito bonito.
Às vezes, o mundo é pela primeira vez.
Um crânio careca e brunido, além.
Um rapaz de bicicleta, dentro de um capuz branco.
O número 50 escrito num autocolante de táxi.
(Qualquer dia faço aquele número.)
Percebi finalmente, caraças: o senhor polícia está de guarda à agência do Banco de Portugal.
Portugal é o meu País.
Como crias ao pé da Mãe, três bancos de uma assentada: BPI, Banif e Caixa Geral de Depósitos.
(Só espero que o senhor polícia não suspeite de que estou aqui a rabiscar coordenadas de assalto, que até estou, mas ao ouro da manhã, não ao outro, o vil.)
Limpeza a Seco numa Hora – diz uma carrinha cor-de-laranja sem abrir a boca.
O rádio do senhor polícia vai grasnando, de quando em quando, umas tosses eléctricas: palavras que soam a voz de pilha.
O empregado começou a abrir os chapéus-de-sol da esplanada.
(Não abra o meu, senhor empregado.)
Autocarro de Oliveira de Barreiros, uma senhora de casaco cor-de-xadrez, uma rapariga com um ramo de flores-de-loja-para-altar, que isto aqui em Viseu fia fininho.
Dois rapazes e duas raparigas, de ar prototípico bloco-de-esquerda, perfumam, à passagem, um rasto de xamon.
Há um carrossel infantil na praça: montra dos frutos do sagrado matrimónio.
Estou aqui todo contente.
Não tarda, iço o cu e vou dar uma volta.
Mas primeiro vou levar o pão a casa, que é para isso que ele nasce.
E todas as manhãs de nascimento de pão são santas, que o sabemos as pombas e eu muito bem.
Santas e com a Primavera na boca, como uma memória de limão, uma mordedura de árvore.
1 comentário:
Gosto da tua Viseu, pá! É um burgosinho abeatado que se acapitala na razão directa do quadradado do tempo do poema.Pois, então!
Brittannicus
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