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Viseu, Caramulo e Viseu, tarde e noite de 25 de Março de 2008
Vim às ruas ver passar os adormecidos.
Escrevo em silêncio tal que não despertem.
Dizem passando algumas palavras, que uso.
São vocábulos fundos e frios como cisternas.
É como estar ao telefone ouvindo desconhecidos.
Vozes que fingem de pássaros, que se não repetem.
Só os cães públicos estão acordados.
Faço de cão público, guarda de adormecidos.
Uma adormecida compreendeu o sonho que a leva,
ei-la que atira transparentes braçadas de rosas.
As crianças adormecidas levitam como santos.
O silêncio adquire coruscações de neve.
Eu estou calado e escrevo as palavras.
Eu sou um acordado e escrevo as palavras.
Um adormecido, velho como uma igreja, ralha.
Sinto que odeia de si mesmo o corpo.
Muitos são translúcidos, vejo-lhes os órgãos.
As vísceras cantam encarnado no ar frio.
Eu nunca dormi, por isso nada sei.
Escrevo para pedir a esmola de saber.
Estou acordado entre eles, vivo caninamente.
Os adormecidos amam de olhos abertos.
Os adormecidos olham a cegueira do amor.
A cidade dos adormecidos é definitiva.
Quartzos de joalharia pulsam narcolepsia.
Considero muito importante não despertar.
Não despertar nem adormecidos nem expectativas.
Folhetos-jeovás párabrisam-lhes os carros
de uma felicidade brasileira.
Eu ando de bicicleta nas pernas qual cão amestrado.
Eu sou feliz no sono alheio.
Eu sou sonhado por meus amados.
Os vivos e os mortos, amados todos.
Ele há de tudo na minha vida insone.
Vim às ruas ver passar os adormecidos.
Isto não é Alcobaça, onde chove desde sempre.
Uma vez, em Alcobaça, um homem à chuva.
À chuva, parecia um cão antes de mim.
O ar cheirava a fruta molhada, anos e anos.
Um dos adormecidos chamava-se senhor Isidro.
Vendia queijo, que com café servia.
A vida parecia-me outra coisa.
Talvez eu dormisse, em Alcobaça,
isto não é Alcobaça.
Isto é um público cão que passa
entre linhas.
Os amados todos, todos vivos, mortos todos.
O ar molhado na fruta dos adormecidos.
De repente sou posto na rua.
Uma voz de pedra amando as casas,
essa legião.
Uma vez, em Lisboa, vi os barcos dormindo.
Era um quarto arrendado, longe do rio.
Vi os barcos dormindo num quarto.
Eu devo ter passado cidades.
Eu devo ter cidades do passado.
Eu sou sonhado por cidades.
A vida já foi Alcobaça, mas agora.
Os cães ligam destinos urbanos.
Os cães não dormem.
Julgamos que dormem mas não, cão.
Antes de aqui ter chegado, eu, o sono.
Uma pátria que se não sonha nem revê.
As ruas das cidades sem rio arrefecem.
Arrefecem muito, as adormecidas.
Vim às ruas ver-me passar, insone.
Vozes desconhecidas em alheio telefone.
Blocos geométricos padecem frias matemáticas.
Hamburguerias amarelejam filhos iguais.
Os adormecidos frequentam as expos.
Desconhecem António Osório, refilam pus.
Cantam de cor pipilações de registadora.
Querem um carro, acordar é que não.
Saí às ruas a ver os adormecidos viver quais medusas.
Uso-lhes as palavras, são humanas.
Eles não sabem os versos que deixam.
Piscam ou não piscam à esquerda nas rotundas.
Compram móveis leves, trocam botijas de gás.
Falecem subitamente contra toda a corrente.
O dinheiro inquieta-os, fá-los moralizar.
Há adormecidos ao abrigo do Banco de Portugal.
Estou acordado entre cães.
Numa cozinha, a Mãe afaga-me, que durma.
Mas os cães públicos acordados como retratos.
Na sala, entre aquisições duvidosas, acordado,
os cães, os retratos.
Faço a ronda.
Em menos que nada, serei nu, contigo,
e serei o teu melhor amigo,
nada que me esconda,
mordido de transparentes braçadas de rosas.
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