27/03/2008

Algumas das Últimas Cores



Manhã rica, a de hoje, isso sim. Levantei-me cedo, canilei a crónica 45 d'O Ribatejo, comprei uma secretária antiga numa loja de toxicocristãos, fui ao Avenida soltar-me das palavras que seguem infra e – na volta do correio – recebi de presente um abraço autógrafo com livro por fora: O Amante Japonês, de Armando Silva Carvalho. Rica manhã, isso sim.

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Algumas das Últimas Cores
Viseu, no Avenida, manhã de 27 de Março de 2008


I

Desconheço se acabo de vê-lo, se há anos o tenho em exibição no cinema da memória – é um rapaz de olhos avariados pelo pó, cerrada barba negra anoitecendo-lhe a cara: um cavaleiro da heroína. Pede esmola à porta de um centro comercial do burgo. Estende a mão de defunto como se oferecesse uma flor de papel vegetal. Nem sempre posso dar-lhe alguma coisa, também tenho pouco. Desconheço se o vi esta manhã, se a morte o levou já. Quem diz a morte, diz a vida. Também desconheço em que cidade escrevo – e em que manhã. Sei que, em cada regresso a casa (qual casa?), as palavras (mais e mais e mais palavras, sempre) me esperam, ávidas. Não sei livrar-me delas. Estão por todo o lado. Segregam imagens, babam postais: o rapaz esmoler, dele a amarelidão hepática – uma iluminura. Sim, isso: iluminuras, as palavras de que sou lebre e batedor, tambor e alfobre. Também me vejo de costas, no centro de uma praça de gravilha, o casaco preto afastando-se. São raros momentos de paz. Escapo-me e branquejo num limbo sem versos. Depois volto, a barba negra anoitecendo-me a cara que meu Pai tocava pelo adormecer, não sei se há pouco, se há muitos anos, noutra cidade, antes da palavrosa cavalaria da vida a que pertenço iluminuramente.

II

Fiz as contas
sobrou-me isto
meia dúzia de versos
uma ponta de cigarro
um olhar que arrefece
nas últimas cores da manhã.

2 comentários:

Anónimo disse...

o primeiro parágrafo dá um murro no estômago, daniel. a forma como descreves o toxicodependente é de cada palavra um arrepio. obrigada.

Daniel Abrunheiro disse...

Eu é que, naturalmente, agradeço, amiga.

Canzoada Assaltante