Valsa do Homem com Boneca
Viseu, entardenoitecer de 20 de Março de 2008
Vi o homem dançar com a boneca,
tocava a banda transeunte, invisível.
Era uma valsa, como todas triste.
Havia uma furiosa alegria alcoólica a partir do homem.
A boneca, como todas, não era alegre.
Devia esperar por ele enquanto ele dançava ao peito dela.
Isto era outra vez em XIX, esta tarde.
Os burgos, sabem?, cimentados a bispos
e gente que pena e pune – mas não
valsa.
Eu vejo.
Tudo é tão de borla, ver.
O mundo passava e nem olhava
0 homem valsar com a boneca.
Tocava a banda invisível, transeunte.
As pessoas, também, desenrascam-se como podem.
Também nem toda a gente tem boneca.
Nem toda a gente sabe dançar.
Isto foi uma tarde, em Viseu.
Nem só Viena de Áustria valsa, cada
Dia de Ano Novo.
A boneca olhou-me, porém,
rápida:
era Março e ela sabia-o
ao peito dele.
Viseu, entardenoitecer de 20 de Março de 2008
Vi o homem dançar com a boneca,
tocava a banda transeunte, invisível.
Era uma valsa, como todas triste.
Havia uma furiosa alegria alcoólica a partir do homem.
A boneca, como todas, não era alegre.
Devia esperar por ele enquanto ele dançava ao peito dela.
Isto era outra vez em XIX, esta tarde.
Os burgos, sabem?, cimentados a bispos
e gente que pena e pune – mas não
valsa.
Eu vejo.
Tudo é tão de borla, ver.
O mundo passava e nem olhava
0 homem valsar com a boneca.
Tocava a banda invisível, transeunte.
As pessoas, também, desenrascam-se como podem.
Também nem toda a gente tem boneca.
Nem toda a gente sabe dançar.
Isto foi uma tarde, em Viseu.
Nem só Viena de Áustria valsa, cada
Dia de Ano Novo.
A boneca olhou-me, porém,
rápida:
era Março e ela sabia-o
ao peito dele.
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Na Noite de Comboios
IV Sonetos em Prosa
Viagem Pombal-Mangualde, noite de 15 de Março de 2008
I
Estou na noite de comboios.
É uma fria noite de comboios.
Há três, quatro corpos na plataforma da gare.
São corpos como o meu: vigiados pelo relógio imóvel.
Sinto com grande nitidez o ranger da eternidade.
Estive num café vazio: no televisor ardia futebol.
O toldo negro da tenda noite estendeu-se sozinho.
Houve árvores entre o café e a gare, terríveis, desoladas.
Pareceram-me mulheres sem filhos, negras, à espera.
Um homem masturbava-se no urinol, a porta entreaberta.
Olhava de lado como um peixe.
Vi-lhe a mão rápida, de pedra.
Entrei no bar da estação, desci a um copo.
As palavras emaranharam-se-me aos pés, heras.
II
Estas são algumas palavras.
Vão chegar a algumas pessoas, entrar nelas.
Vão convocar nelas, delas, a secreta viagem própria.
Mas o que digo – é só na minha vida que digo.
O que digo – é só daqui até Mangualde.
Viajarei sempre antes em cada depois.
Também vigiarei: a morte e o comércio, os animais e as árvores.
E o aroma desenhando sozinho a palavra rosa.
E o homem masturbando-se no fedor a mijo.
E esta força motriz, mortífera, matriz.
Dá-me umas moedas para o bilhete de comboio.
Recorda-me numa frase tua.
Percebe que percebi um azulejo de água numa mata.
E que vivo como vou morrer: entre comboios e sonetos.
III
No comboio, a galeria de rostos.
São os rostos dos mortos do futuro.
Estão numa cor para além do branco.
Sinto à passagem as palavras de cera dentro dos rostos.
Cera, hera: cara, cara.
A tristeza enquistada como uma flor dura neles.
Cada olhar tentando não desviver de todo.
A indiferença coetânea de cada um.
Os títulos que empilham como medas.
O irrisório das nomenclaturas.
Duas gajas fotografam-se estupidamente de telemóvel.
Riem-se num cristal muito estúpido, as gargalhaduras rachadas.
Um gajo de cabelo rapado incomoda com reggae de portátil.
O Ultimatum de Álvaro de Campos é superior ao Manifesto de Marinetti.
IV
Ou então ir comer um hambúrguer, ser feliz.
Não pensar na morte da bezerra – ou na da mãe.
Fumar longos cigarros perante um rio.
Ter uma mulher que seja uma amurada.
Descer numa estação diferente da escrita no bilhete.
Entrar numa pensão, cumprimentar em torno os fantasmas.
Morder devagar um sexo lavado, uma maçã limpa.
Ter dentes para tal.
Corpos como o meu entre comboios vão chegar.
No comboio, a galeria para além do branco, negra, à espera.
Para além da dura flor coetânea dentro do rosto.
Medas de cristal vivo.
Mangualde rápida, de pedra.
Estarei antes, tentando cada.
IV Sonetos em Prosa
Viagem Pombal-Mangualde, noite de 15 de Março de 2008
I
Estou na noite de comboios.
É uma fria noite de comboios.
Há três, quatro corpos na plataforma da gare.
São corpos como o meu: vigiados pelo relógio imóvel.
Sinto com grande nitidez o ranger da eternidade.
Estive num café vazio: no televisor ardia futebol.
O toldo negro da tenda noite estendeu-se sozinho.
Houve árvores entre o café e a gare, terríveis, desoladas.
Pareceram-me mulheres sem filhos, negras, à espera.
Um homem masturbava-se no urinol, a porta entreaberta.
Olhava de lado como um peixe.
Vi-lhe a mão rápida, de pedra.
Entrei no bar da estação, desci a um copo.
As palavras emaranharam-se-me aos pés, heras.
II
Estas são algumas palavras.
Vão chegar a algumas pessoas, entrar nelas.
Vão convocar nelas, delas, a secreta viagem própria.
Mas o que digo – é só na minha vida que digo.
O que digo – é só daqui até Mangualde.
Viajarei sempre antes em cada depois.
Também vigiarei: a morte e o comércio, os animais e as árvores.
E o aroma desenhando sozinho a palavra rosa.
E o homem masturbando-se no fedor a mijo.
E esta força motriz, mortífera, matriz.
Dá-me umas moedas para o bilhete de comboio.
Recorda-me numa frase tua.
Percebe que percebi um azulejo de água numa mata.
E que vivo como vou morrer: entre comboios e sonetos.
III
No comboio, a galeria de rostos.
São os rostos dos mortos do futuro.
Estão numa cor para além do branco.
Sinto à passagem as palavras de cera dentro dos rostos.
Cera, hera: cara, cara.
A tristeza enquistada como uma flor dura neles.
Cada olhar tentando não desviver de todo.
A indiferença coetânea de cada um.
Os títulos que empilham como medas.
O irrisório das nomenclaturas.
Duas gajas fotografam-se estupidamente de telemóvel.
Riem-se num cristal muito estúpido, as gargalhaduras rachadas.
Um gajo de cabelo rapado incomoda com reggae de portátil.
O Ultimatum de Álvaro de Campos é superior ao Manifesto de Marinetti.
IV
Ou então ir comer um hambúrguer, ser feliz.
Não pensar na morte da bezerra – ou na da mãe.
Fumar longos cigarros perante um rio.
Ter uma mulher que seja uma amurada.
Descer numa estação diferente da escrita no bilhete.
Entrar numa pensão, cumprimentar em torno os fantasmas.
Morder devagar um sexo lavado, uma maçã limpa.
Ter dentes para tal.
Corpos como o meu entre comboios vão chegar.
No comboio, a galeria para além do branco, negra, à espera.
Para além da dura flor coetânea dentro do rosto.
Medas de cristal vivo.
Mangualde rápida, de pedra.
Estarei antes, tentando cada.
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Foto: Rua Direita, Viseu, tarde de 20 de Março de 2008
(com tratamento de S.B.)
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