20/03/2008

Toda a Gente, Ninguém e mais Seis

Para a minha Mariana, uma das seis, e logo hoje, 20 de Março



A minha justiça é ser toda a gente
quando, ninguém, bordo de passos as ruas.
Cedo a rimas e a tabernas,
componho odes não modernas
e em petroleiros vejo faluas.

A minha vida é um papel amarelo
do sol que lhe dá, a que se recurva.
Os óculos escuros daquele senhor na minha cara,
minha mal dormida noite no cansaço
daquela senhora comprando tangerinas.

Passam então seis meninas:
que gráceis flores, de gaze brisas…
Tudo de que, ó eu, precisas
é de comprar ’mas tangerinas.

Mas não há faluas. Ele já nem há rios.
Todo o ninguém faz de toda a gente.
Ele só há ruas e desvarios
de alguém que passa, indiferente.

A estreme beleza do homem azul
à porta da oficina oleando um mecanismo.
Às mãos dele, lúbricas, na peça
de duro metal humano, solar, azul.

A velha da lenha arrastando o carrito
de gravetos crucificados, pascais.
Os soluços que sobem do coração ao diafragma dos olhos,
que a alegria é tão irremediável quão sua contrária.

Eu agora vou estar sempre aqui.
Exerço uma justiça inalienável.
Tenho p’ra com o comércio o modo amável:
quanto custa a chita? e o organdi?

Pulsa o sol membranas de terileno.
Uma linfa baba lunalbuminas.
’inda me lembro de, em pequeno,
achar, à brisa, gazes, meninas…

Agora é tudo onde floresta foi.
Máquinas desventram túneis p’ra que máquinas
possam adentrar ventres, rápidos, rápidas.
Chama-se Cidade, mas há ’inda uma
zona histórica muito interessante,
umas igrejas e tal, e tal uns bares,
a estátua de não sei quem.

(Como falo p’ra ninguém, toda a gente
sabe de que falo: na Cidade,
a banca de tangerinas é um espelho de ouro.
E não há quem borde tão bem
quão um ninguém.)

Uma mulher toda ancas passa a trote,
seus relogiovários marcando a hora:
a tempo nutrir de sebo o filhote,
que, se o pai sabe, pod’ (até) ir-se embora.

É preciso todo o cuidado com o homem da rua.
Dele é todo o poder, del’ a força toda.
Os homens são muito poderosos quando param.
É absolutamente necessário dominar o código comercial.

E esse milagre venatório dos olhos das senhoras?
Quem o peregrina além-oftalmologia?
Olhos que parecem a mesma luz do dia,
olhos sem olhar, olhos sem senhoras

dentro, caramba! Mas, enfim,
toda a graça será um dia connosco,
embora um só dia:
ninguém nos leu
estes versinhos em pequeninas letrinhas
do código comercial.

Por isso, ninguéns,
todos bordamos,
em justiça plena,
as ruas, onde as tangerinas.

É então que passam as seis meninas.


Viseu, ao sol, tarde de 20 de Março de 2008

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