04/03/2008

Podografia Viseense – Tríptico – I. Manhã

Breve Implicação

Manhã de domingo, dia 2 de Março de 2008: devo ter inventado duas palavras, não sei. Podofante (de podofania – falar com os pés ou de pé) e podografia (que dá podógrafo – o que escreve com os pés ou de pé). Começou organizando-se, o que escrevia, a partir da situação, aliás banal, de gajo que, a pé pela cidade, vê palavras em vez da realidade. Ou em voz dela. Não sei. Sei muito pouco. Sei que me aconteceu, coisa rara, ler a amigos, a seguir ao almoço desse domingo, os versos matinais da composição. Julgo que acharam piada a uma coisa escrita com os pés. De qualquer modo, a coisa deu um tríptico, de que hoje publico a primeira parte. Atentareis, decerto, na morfologia artificiosa da coisa (um dístico rimado a abrir cada sétima consequente). Garanto-vos que a imposição formal me surgiu, por assim dizer, naturalmente. Pronto.


Podografia Viseense – Tríptico – I. Manhã

0.

Plena de luz, de gente vã,
é de domingo a manhã.


Todos os domingos, o mesmo domingo único.
Magnífico animal, o dia, para a savana da melancolia.
Do limbo os cobertores sacode cedo o podofante.
Ao domingo, não contam as mãos.
Ao domingo não contam, as mãos.
Ao domingo não, contam as mãos:
domingo é dia de podografia.

1.

Plenas de vã gente, as casas
guardam quedos anjos sem asas.


Um tigre branco adormece entre flores amarelas.
É perto de água corrente, natural.
Desmantelaram o circo, esqueceram-no.
Ele dorme muito branco contra a solidão.
Quando o domingo tiver sido, ele não será.
Tigres e domingos partilham tudo:
abandono, sono, flores de todas as cores.

2.

Um homem no tempo da cidade do homem:
moço senil, arcaico jovem.


Onde se terão metido todos, os dias, os homens?
Onde se terão metido, todos os dias, os homens?
Onde se terão metido todos os dias, os homens?
Sou o podofante: falo sozinho de baixo.
Sou o podógrafo: escrevo para cima, só.
Já as churrasqueiras perfumam a pré-tarde.
Pés ao caminho, os olhos ao ar: janel’ ando.

3.

Juncos e junhos aqui não habitam,
bicos em beirais de corvos crocitam.


Um casaco preto para enjaular de noite o coração
em pleno dia: indumentária circunvalação.
Os pés manuseando as pedras que calçam,
ali a Rodoviária com seus anjos humilhados,
ali a cervejaria encerrada do senhor Astor,
além, onde foi o circo, uma poça de sangue,
aqui um casaco preto até aos pés.

4.

– Dê-me empadas de galinha, senhora minha.
– E um bolo de cenoura, minha senhora.


Oh as pastelarias da modernidade
que às duas da tarde fecham todas:
modernidades e pastelarias.
Oh as cegonhentas famílias meias-de-leite
poupando vinagre, queimando azeite.
Oh tenebrosa província dos solares
convertidos à pressa em disco-bares.
Oh tigre branco de casaco preto, dorme.

5.

Atiram as ruas uns braços de polvo.
Caminha, senhor, que eu te absolvo.

Ali a solidão fardada do polícia
(sempre tão uniforme a solidão, verdade?),
ali a creolina francesa da perfumada madama,
além o reumocavalheiro que já não fuma nem ama,
acolá o casal ciclista aeróbicocoiso,
por toda a parte a tenda partindo-se da luz,
bom, magnífico dia para abandonar um tigre.

6.

Quieto, calado, podes, senhor, ser feliz
num quieto café chamado Paris.


A degradação da beleza e a beleza da degradação,
tudo possível ao mesmo tempo do instante mesmo,
num café muito belo e degradado de rés-praça,
em baixo, onde o riacho murmura óleo,
onde o lusocigano e o mulato brasileiro
suspiram por euros e milhões e cálices
de doce abafado, abafado e doce como o domingo.

7.

Irrígua claridade pedestre minha,
permitas não ainda a angústia da tardinha.


Alguma tristeza, sim, mas ignorância, não.
Movente silhueta comovida pela cidade,
de pastelarias utente quais metástases,
preto tigre de casaco branco sombrio,
podografador da senil infância do coração,
alguma felicidade, sim, mas algum sim, não.

8.

– Meu filho, tantos dias sem um telefonema.
– Minha Mãe, um só dia, um só poema.

Lembro-me muitas vezes da senhora.
Todas as mães se resumem à senhora.
Toda a maternidade conflui na senhora.
A senhora é a beleza da senhora degradação.
A senhora é a senilidade do coração.
A senhora não o queria, mas a tardinha
vem-me pela manhãzinha e faz-se-me noite, cedo.

9.

Pelo chão, a escrita da boca avulsa:
cascas de tremoços, caricas, tosse convulsa.


Lá fora, rés-dos-pés, outra escrita toma
seu foral humaníssimo, columbófilo:
sonda e sombra do poeta necrófilo
que olvidado par de mãos retoma
para ilustração lunar do sol do dia.
Que em vez da vida a poesia.
Que em vez da vida a poesia.

10.

A barba por fazer, ao balcão, um rapaz.
Ninguém sabe do que é ele capaz.


Jaqueta de napa, pobre par de calças pobres.
Pede um abafado, na palma conta os cobres.
Rasca camisa riscada, maçã-de-Adão
aflorada por gola de pijama de algodão.
Precoce velho de trinta anos.
Marinheiro nenhum de nenhuns oceanos.
Contribuinte e triste: um dos humanos.

11.

– A menina, se não se importa.
– Qual quê, é mesmo aqui nesta porta.


Alabastrina alternativa do amor, o aluguer
implica taça de espumante e mulher.
Ela almoçou frango de churrasqueira.
Toda a tarde esgazeou pela cidade.
A noite traz camionistas, poetas, empreiteiros.
Um filho em casa de amiga há sete anos.
Marinheira nenhuma de nenhuns oceanos.

12.


Estátua ao vento dançarino,
cada homem é velho de menino.

Verdade.
Hoje, portátil sombra ao sol da cidade.
Domingo, ruas franqueadas pelo puríssimo deserto.
Amanhã?
Sei lá, nunca saberei.
Ontem?
Não sei, nunca saberei.

13.

Sobrepostas mãos, uma da outra sul.
Além, de um painel o azulejo azul.


Bairro que a sombra tomou, casas e casas.
Pórticos nunca mais entrados.
Dão-se os jardins a selvajarias vegetais.
Aqui não entra ninguém nunca mais.
Esta dava (é pena o tigre) uma rica casa de fados:
tem azulejos à face com anjos pintados.
Nenhum dos anjos tem, é domingo, asas.


14.

Plena de luz, de gente vã,
é de domingo a manhã.
Plenas de vã gente, as casas
guardam quedos anjos sem asas.
Um homem no tempo da cidade do homem:
moço senil, arcaico jovem.
Juncos e junhos aqui não habitam,
bicos em beirais de corvos crocitam.
– Dê-me empadas de galinha, senhora minha.
– E um bolo de cenoura, minha senhora.
Atiram as ruas uns braços de polvo.
Caminha, senhor, que eu te absolvo.
Quieto, calado, podes, senhor, ser feliz
num quieto café chamado Paris.
Irrígua claridade pedestre minha,
permitas não ainda a angústia da tardinha.
– Meu filho, tantos dias sem um telefonema.
– Minha Mãe, um só dia, um só poema.
Pelo chão, a escrita da boca avulsa:
cascas de tremoços, caricas, tosse convulsa.
A barba por fazer, ao balcão, um rapaz.
Ninguém sabe do que é ele capaz.
– A menina, se não se importa.
– Qual quê, é mesmo aqui nesta porta.
Estátua ao vento dançarino,
cada homem é velho de menino.
Sobrepostas mãos, uma da outra sul.
Além, de um painel o azulejo azul.


Viseu, manhã de domingo, 2 de Março de 2008

Sem comentários:

Canzoada Assaltante