23/03/2008

Saudadárvores, Urbanamente


Saudadárvores, Urbanamente

Estou aqui.
Vim para instituir, entre casas, ao cabo de ruas,
que as árvores são os mapas venosos dos corações.
Ao cabo de ruas, entre casas, tenho saudades delas.
Têm-me sido um bálsamo refrigério sempre,
sempre que a amargura incita suas fogueiras ao meu caminho.
Nestoutra floresta, os íncolas revestem-se de peles mortas,
bebem leite chilro, tossem tossezinhas civilizadas,
compram cornetas electrónicas aos filhos, não passeiam
um verso sequer do arbóreo incunábulo da nostalgia.
Mas, não!, que direito tenho eu a arborizar os indígenas?
Cada um é de suas sendas, cada um azinhaga
como pode, mais do que quer.
Sei apenas que lhes digo bom-dia, aos mapas venosos,
antes ’inda de abrir os olhos, cada dia.
Confio muito na educação.
Confio muito na educação e não quero que me esqueçam, elas.
Visitei-as muito, em outras albas grisas.
A noite retrazia-mas pela mão: como a meninas
altas e magras, escurecidas, tremendo de frio ao vento.
Na contraluz da contranoite, apareciam verticais como poemas,
elas todas.
Bonitas e poderosas como frases lidas de lado.
Não digo místicas: digo-as frásticas, fáticas, poderosas
e bonitas.
Todas de tinta-da-china no ar vegetal.
Palimpsestando todas a escrita primacial do Tempo,
todas gráficas na leitura improvável das nossas vidas.
Desdobravam ruas entre elas na terra vegetal,
ruas sem cabo possível, infinitos versos novos
que os passos sublinhavam e sublimavam
uma a uma, um a um.
As que piscavam pássaros, as que ofereciam frutos,
as que respiravam como amantes saciados,
as que pensavam para fora folhas e folhas, páginas e páginas,
livros vivos de ramos inumerados,
uma única página lida do alto da montanha.
Sei-vos, seivas, de outro sangue.
Expostas ossaturas à carnagem do vento, quando
arrepia sentir delas a voz por assim dizer
humana.
Um homem está entre árvores como entre pensamentos,
como uma mulher está dentro dos filhos.
Entretenho-me agora entre comércios e comedores,
gosto de ver a brisa dando nas lotarias, nos lençóis
que caem das varandas como colchas pobres
para procissão laica de dias ditos úteis.
Aos, como hoje, domingos, é mais difícil,
um pouco-nada mais difícil.
O encerramento vespertino das igrejas evidencia
a suma indiferença de Deus,
o Mesmo que nunca trepou, em Menino,
a uma árvore.
Vim para dizer isto dos mapas, dos corações, das lotarias
a que o zéfiro empresta números voadores
e volantes coruscações de papel, à sorte.
Mas é a minha vida: rumorejam-me agora
as conversações da pobre gente entre garfadas,
ângulos de copos com bocas e pescoços,
trânsitos da digestiva mortandade.
Das árvores, não mais que a taxidermia dos livros,
arrumados em casa como postais alfabéticos
a reler no turismo invernoso das noites,
as glaucas noites eléctricas sem Lua das casas,
onde a madeira não chia o mar.
O lápis tomba da mão como um tronco mínimo,
a mão sobe-me à cara para afagar
um cansaço urbano não silvícola,
do coração a introspecção venosa oblitera
cartões antigos de um único amor único,
precário é o domingo no café eléctrico,
pela tarde, ao cabo de ruas, entre casas.
Também nem vejo por que admiração:
todos teremos sido, entre árvores, outrora, pascais:
mortos e renascidos em três passadas,
três dias para quê.
Se longamente amamos alguém, é entre árvores.
Ou foi.

(Em Ur havia um bar
o bar de Abraão
palavras cruzar
sem ter solução.)

Na roda-rosa dos tempos-ventos,
um sopro de cordas quartetando atrás,
um vento luminário de festifoguetes,
o perfume da sardinha rechinando lumes
como se o mar ardesse em terra: e
arde.
Todas as circunvoluções pregando o mesmo
Cristo cerebral, o das igrejas fechadas,
dominical.
A cidade, ai a cidade!, vã e fértil,
ubérrima de cabritos empregados na banca,
nas repartições, nos quiosques, nas mercearias e
nas bibliotecopastelarias que, sumas, condensam o papel
das árvores.
Estou aqui.
Este é o meu tempo. Um vórtice de todo-antes
para um depois-de-versos.
Na cama, o vento lá fora hipotalamando os sonhos,
os acordados sonhos gentios, que não gentis,
de um poeta desprovido de Deus
e de arvoredos.
Na cama, abrindo por dentro os olhos fechados,
tal que uma simples barragem hidroeléctrica
brote em torno tantas ilhas-do-tesouro
quantas pívias-crusoe batidas à conta
de mulher de robinson nenhum.
As árvores, as árvores, ar, ar, ar, árvores,
azar-vores-vozes.
A trigueirita ruiva que flameja na loja de roupa.
A velha-muito-velha que s’embacia de velas-de-altar.
O poder versalheseano dos mortos absolutistas.
O absurdo, aliás mínimo, do versilibrismo
o mais funalunanoctâmbulo.
A essência narcoléptica da felicidade.
E tão poucas árvores na cidade.
Dizia-te que me perdi, certa ocasião, em Londres
lida do alto, não tinha ’inda eu
abertos os olhos.
Saudava eu aqui e além – e do meu coração
subia a fundamental aceitação
da cidade, de seus comedores,
suas árvores, não minhas, gravadas em pedra,
longe, dentro de aqui,
onde estou.

Texto: Viseu, tarde de 23 de Março de 2008

Fotografia (com tratamento especializadíssimo de S.B.): Caramulo, 23 de Fevereiro de 2008

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