Já agora, e depois da segunda parte do tríptico Podografia Viseense (v. infra), publico a crónica desta semana (nº 42) da série Rosário Breve, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt) como sempre
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Poema de Álvaro Sampaio
Numa rua de Viseu, costuma estar um rapaz acordeonista. À frente dele, sobre um banquinho de senhora dos bolinhos-e-bolinhós de noite de Todos-os-Santos, o rapaz tem uma cadela amestrada. Ele toca horas a fio. Ela, imóvel, segura na boca uma guita de que pende um copo de plástico. O copo é para pôr a esmola.
Numa petisqueira perto da Sé, costumam estar duas mulheres em mesas separadas. Não se falam, talvez porque uma é muda e ambas são bêbedas. A da mesa da porta bebe sempre branco. A da mesa do balcão, tinto sempre. Ralham-se mutuamente: uma com gestos e a outra com gostos.
Eu, que não possuo do comércio senão a vã demanda de um cantinho para escrever versos que queria álvaro-de-campos mas me resultam jorge-sampaio, fico invariavelmente deprimido. Nunca falha: deprime-me a epifania da cadelita esmoler, deprime-me o par de jarras iracundas tintóbranco e deprimem-me os versos que gasto o tempo a escrever em vez de arranjar um emprego e ir trabalhar.
Tudo isto porque o meu coração é, além de portátil, lingrinhas. Carbura cordaturas comunistas e católicas, numa esquizomescla de caridade com indignação. Já me era assim antes de Viseu, pelo que suponho sempre assim me será: não tenho remédio.
Refugio-me deste mundo em leituras inofensivas. Esta mesma tarde, por exemplo, cosi-me com as linhas da biografia de um médico francês chamado Xavier Bichat. Só viveu trinta anos, mas foi q.b. para, hoje ainda, ser considerado o pai da anatomia patológica. O problema é que depois a noite acaba, a manhã começa e é preciso sair à rua outra vez, a reverificar o rapaz do acordeão, a cadela da esmola e as mulheres que bebem. O meu coração, lingrinhas embora, já me apontou, no entanto, a solução poética possível. Esta assim: uma destas frias manhãs, passo pelo acordeonista, apareço no café das velhas e mando vir vinho para nós três.
Eu bebo pelo copo que comprei à cadelita com o valor destes versos.
Numa rua de Viseu, costuma estar um rapaz acordeonista. À frente dele, sobre um banquinho de senhora dos bolinhos-e-bolinhós de noite de Todos-os-Santos, o rapaz tem uma cadela amestrada. Ele toca horas a fio. Ela, imóvel, segura na boca uma guita de que pende um copo de plástico. O copo é para pôr a esmola.
Numa petisqueira perto da Sé, costumam estar duas mulheres em mesas separadas. Não se falam, talvez porque uma é muda e ambas são bêbedas. A da mesa da porta bebe sempre branco. A da mesa do balcão, tinto sempre. Ralham-se mutuamente: uma com gestos e a outra com gostos.
Eu, que não possuo do comércio senão a vã demanda de um cantinho para escrever versos que queria álvaro-de-campos mas me resultam jorge-sampaio, fico invariavelmente deprimido. Nunca falha: deprime-me a epifania da cadelita esmoler, deprime-me o par de jarras iracundas tintóbranco e deprimem-me os versos que gasto o tempo a escrever em vez de arranjar um emprego e ir trabalhar.
Tudo isto porque o meu coração é, além de portátil, lingrinhas. Carbura cordaturas comunistas e católicas, numa esquizomescla de caridade com indignação. Já me era assim antes de Viseu, pelo que suponho sempre assim me será: não tenho remédio.
Refugio-me deste mundo em leituras inofensivas. Esta mesma tarde, por exemplo, cosi-me com as linhas da biografia de um médico francês chamado Xavier Bichat. Só viveu trinta anos, mas foi q.b. para, hoje ainda, ser considerado o pai da anatomia patológica. O problema é que depois a noite acaba, a manhã começa e é preciso sair à rua outra vez, a reverificar o rapaz do acordeão, a cadela da esmola e as mulheres que bebem. O meu coração, lingrinhas embora, já me apontou, no entanto, a solução poética possível. Esta assim: uma destas frias manhãs, passo pelo acordeonista, apareço no café das velhas e mando vir vinho para nós três.
Eu bebo pelo copo que comprei à cadelita com o valor destes versos.
4 comentários:
belíssima crónica poética do centro histórico de viseu que tão bem conheço e de que tanto gosto. adorei ler, daniel. cumprimentos ao autor e um beijinho para si *
(re) publicado na incomunidade
bonjour daniel,
li este seu texto no blog incomunidade e reli-o agora melhor.
é lindo!
Bichat...pois é aqui ao pé de casa. Paris deve-lhe parecer encolhido...
digo sempre " é ao pé de casa"...
estou no centro e ando sempre quase a pé, mas é verdade, l'hopital Bichat, é aqui em République.
ia là na rue Bichat trabalhar num squat maravilhoso, Tarkovkiano...
se là fosse o daniel escrevia um texto assim, como este.
espero que tome o tal copo, de três, o cao...
Bon week-end.
pense em mim dia 13 de março...
danço" c sans fin!", un duo.
espero vir a portugal dançà-lo, tem algum sitio ai para ao pé de si?
beijinhos
( vai adorar a musica ...)
LM
caro daniel, desculpe este comentário. alguém entrou no blogger ilegalmente e apagou a minha tradução da memória. peço que se conhecer alguém que saiba de informática e possa ajudar-me a recuperá-lo, me diga por favor. muito obrigada desde já...
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