(do poema XXVI)
******
Outro Vestido de Noiva com um Homem Dentro
– versos para um baile no Cartaxo
Viseu, tarde de 28 de Março de 2008
I
Um homem dentro de mim procura-te.
Não sabe quem és.
Eu sei – e não te procuro.
Tenho sofrido muito como um bom cristão.
Ele não, por isso te procura.
Somos tão diferentes, ele e eu:
ele importa-se de morrer.
Quer sofrer ainda em vida.
Ele vai, vê lá tu, de relógio para a praia,
coisa que um homem como eu
nunca faria nem fez nunca,
vê lá tu,
que pode dizer-nos um relógio
perante o mar?
As ínfimas areias, como sabes, contam
estrelas, não minutos.
Temos ambos os dias contados, é certo.
Os dias são como as pessoas nas filas,
as de trás iguais às da frente, é certo.
Eu não me importo de viver.
Trago-o dentro de mim mas é ele
quem me leva pelas finitas ruas,
poços de ar horizontais
de nossos rasteiros voos.
Ele procura-te nas outras mulheres.
Sorri, brande frases delicadas, elas
olham-me de lado, desconfiadas
talvez da minha higiene, não sei.
Sei que ele te procura como um vedor
de freáticas águas de olhos,
nunca te viu nem verá, sei-o eu,
que te conheço e não procuro.
II
É decerto deus – ou o diabo por ele – quem
troca flores por horas na cinzacidade da tarde.
Zunem carros amarelos e vermelhos seus trovões particulares.
Os homens-do-lixo em vez de braços têm asas.
A mulata de blusa verde bebe café de perna traçada.
Era melhor ter tido um amor – pensa aquele velho.
Ansiolitigados disputam trinca de milho às pombas.
Noutros tempos ir para o Brasil era bom.
Em vez de braços têm asas de mosca.
Não sei onde pus o meu livro com gajos do século XVIII:
este gajo dentro de mim põe-me a casa de pantanas.
O Jornal de Notícias diz estas mesmas coisas de outro modo.
Um cãozito mínimo investiga a vida de um relvado,
procede a graciosas assinaturas urinárias:
toda a vida não escreverá outro poema.
Tenho um condão para remexer cinzas.
Remexo cinzas e encontro cidades.
Sou um colector de pompeias
caducas e perenes.
(Se fosse vós, não me riria:
assim é cada dia.)
Um lagarto vermelho: homem com escamosa doença de pele.
Um rapazinho de brinco agrafado ao lóbulo de cera.
Soergo-me na hora passada, pretérita, divina.
Muito gostaria de trocar-te por esta flor
em vez de braços.
III
O meu tio Alberto nasceu no primeiro ano da Grande Guerra.
Dezanove depois, ano da subida de Hitler a chanceler,
cortaram-lhe uma perna.
Em 1977, saiu O Que Diz Molero, fui com ele ver passar
a Volta a Portugal que Adelino Teixeira ganhou.
Três depois, o meu tio Alberto antecipou-se em
quatro meses menos uma semana e um dia
ao John Lennon e morreu no sanatório do Caramulo.
Há quem faça tudo e de tudo para ficar na História,
mas não quero que penseis isso do meu tio Alberto.
IV
Salomónicos salmões de a(qua)viário ao meio fendidos
expõem sua carnação cor-de-laranja-crepuscular
na montra frigorífica do nosso hipermercado
de estimação.
Tarde na noite vamos às compras.
Buscamos vitualhas e gasalhos nutrientes
entre galerias pensadas e prensadas para
pobre gente que como nós trabalha e não tem
tempo por aí além nem por aqui aquém dinheiro.
Gostamos de ver os salmões, extinta estirpe
de nadadores alpinistas, seus olhos em que
a pérola do rio se regelou a pérola de frio,
parentes subidores da dúbia enguia, além, em
latas da Ria de Aveiro.
Apreciamos do porco a venta pré-cozida
embalada em vácuo como as ventas
de quem não lê.
Dou por nós dando às vezes os olhos
à fileira de especiarias, cravinhos e açafrões,
coloraus de pimentões, a canela coentrando
a cheirosa esmiuçada noz-moscada.
Adiante, o pão de série não é para levar a sério,
que a honesto suor de padeiro não cheira,
como antigamente.
Antiga mente é de cada um a nossa, que
no hipermercado demandamos em vão a odorífera
mercearia primacial da infância.
Vale que, quinze minutos antes das onze da noite,
raros são os como nós navegadores de mar enxuto.
Escolhemos o jantar entre congelados e espremidos,
do humílimo agrião à hierática corvina,
um dedo de azeite industrial, uma unha de fiambre.
Ela, da mortadela, sabe que me sabe a infância.
Eu sei que queijo lhe sabe a beijo.
Quando o mundo nos passa um cheque, vamos
na noite hipermercar, mínimos peões do magno xadrez
dos salmões.
V
Só quero isto que me quer: a Língua,
que me faz pessoa portuguesa, um
meio velho que, de quando em quando,
volve a menino
por idioma
e destino.
VI
As nossas vidas são relógios lunares,
ângulos de sombra apontam ponteiros de cedros
aos quartos decrescentes.
Derivamos muito por inclinações montanhosas,
os pés estalidando segundos de poroso cristal,
qual quartzo pedregoso, breve pó eterno de dias contados.
Não me ralo: enquanto tudo for quando, vivo
convosco a Grande Hora Efémera, cinza de ciganos
sazonais brevemente acampados na praia,
sem relógio.
VII
Como vós tenho amigos que sangram,
amigos a quem é possível dar um braço
ao longo do litoral de bares do rio,
numa língua tablada de madeira
onde outrora o operário pescador, a lavadeira.
Sou como vós: sou como voz:
tenho amigos que o dizem por mim,
como nós, sangrando.
VIII
Hão-de colher-te, de ouro e de prata,
ontem.
Não sobrarás
amanhã.
IX
Saem das igrejas e vão comer carne a casa.
Estrepitam fulminantes morais de calendário.
São catolislâmicos, acreditam que a NASA
é um’ONU de estrelas e que Meca, o Calvário.
Acreditam que Deus neles acredita.
Portas de alumínio lhes vedam a casa.
São meus patriotas, aqui na territa.
Islâmicatólicos, ó nus das estrelas, ó micos da NASA.
X
É muito bonito ter olhos de cão, ser humano dentro.
Não adianta nada para a vida, mas é bonito.
Os homens da rua da minha infância ou eram
cães ou não eram homens.
Havia oliveiras, o merceeiro sabia-nos os nomes,
encontrávamo-nos todos em pontuais
casamentos e funerais.
Não sei de onde me perdi, quando, cinzas remexendo,
me desencontro noutra cidade, numa cidade
desprovida de infâncias.
É muito bonito ter olhos de cão na rua,
ao frio e ao vento, as árvores relvadas
pelo musgo do tempo, de uma vítrea baba
de caracóis.
XI
A tarde atira uma flor à cara do mundo:
uma mulher formosa, vê.
XII
É o homem dentro de mim que tens,
não a mim.
XIII
Um floco de espuma faz de ovelha
na colina da minha mão:
tossir espuma de cerveja
faz-me pastor de expectoração.
XIV
Longamente, subido ao monte geodésico, vi as cheias
que estanho eram nos campos da agricultura.
Entretecíamos, os nós-agora-eles de antanho,
uma infância de papagaios de papel-de-seda,
cola de cuspo-e-farinha, meias canas longitudinais.
E viver, então, não era de mais.
Mais longamente vivo agora, de montes exilado
como um viriato pós-moderno, uma coisa com pernas
que demanda as ruas do exílio.
Sou, alado, um dos homens-do-lixo.
(Um floco de espuma na mão: que é isto,
um bicho?)
XV
Era o meu corpo do tamanho de uma mão
quando vi a águia.
Impressa e distribuída pela
Agência Portuguesa de Revistas,
uma águia de
Lisboa-Porto-Luanda-Lourenço Marques.
XVI
De alto a baixo é o corpo feito de águas usadas
mas o que dele conta, ou não, é a residual areia
do fundo.
O mais que há por aqui são pensões e cafés geminados,
em cujos imos é possível adentrar
o mais mulato amor de aluguer para imaginar
outra vida,
outro vestido de noiva.
XVII
Vi a rua vi a névoa vi a cinza vi a gente
de mãos dadas,
nenhum dos dois corpo tendo,
sequer águas.
Éramos ambos areia, ambos
contadores de estrelas.
XVIII
Troca-me por uma hora,
qual flor.
XIX
Não tenho qualquer interesse enquanto pessoa.
Nem sequer falo alto ao telemóvel nas ruas.
Mudo de antena quando dizem o trânsito de Lisboa.
E acho que os olhos são, da cegueira, capicuas.
Não me assiste sequer a redondinha redundância.
Lancho carapau frito a mil desoras.
Entre o ser e o estar, ele há distância.
Deus, ou o diabo por ele, trocou-me as horas.
Não tenho qualquer interesse enquanto cinza
etc.
XX
Tenho um amigo que toca viola-baixo
em bares de rodapé de vulvas desquitadas.
De dia, é oculista. Nas horas vagas,
ouve discos de jazz à base de contrabaixo.
É alto, o meu amigo. Tem um casaco
que furor faria, furão, n’anos 70.
Aos 50 hoje, é um cossaco
de próstata apeada, mas ’inda tenta
a nota certa, coraçãozinho
que a baixa nota é da viola-baixo.
Não sei por onde anda, mas sei certinho
qu’este fim-de-semana é no Cartaxo.
XXI
Nem orações nem corações, por favor.
Estamos todos fartos de versos de bar de fumadores.
O mais é sobreviver, mesmo
que nos chamemos, como este senhor,
Marcolino e que, como ele, voltemos
de graça atrás para mais
duas minis e um telemovilema alto
para o chefe da oficina,
ou o senhor me garante o carro às sete
ou vou marcolinar alhures outras condições.
Não.
Nem orações nem corações.
XXII
Cada vez que estou para tinir versos,
há uma mulher que sabe.
Deve ser porque vibro como uma colher de alumínio
num pires de louça exposto a vibrações.
Não é importante. Não são importantes
nem os versos, nem que eu tina, nem
que ela saiba.
A memória das cidades é feita mais
de engenheiros que redesenham ruas que
de versilibretistas vibradores.
Mas de repente uma mulher
etc.
XXIII
E à flor da boca a flor da Língua.
XXIV
Disponho ainda de algumas propriedades
que partilham com a emoção
o carácter imobiliário:
bens à Lua,
enfim.
XXV
Não me vejas árvore, mas fruto de meu Pai.
XXVI
Alegre inconsciência é a infância
que dizima de si mesma o lírio pelos pátios.
Brune cimento o azul entre gatos
elanguescidos pela do menino terna vizinhança.
Eu fui um menino, eu fui um menino.
Que farei agora de tantos pátios?
Eu sei qu’ele há gatos, mas estes gatos
não são idioma nem destino.
XXVII
Vês? Trouxe-te até aqui pela mão
(e vamos já no XVII)
– e nenhum de nós é corpo,
águas usadas sim
XXVIII
O homem dentro do vestido de noiva
quer ser amado com mão-de-ferro.
Orienta-se mal nas cidades, prefere
hipermercados, onde a mortadela mora
estrategicamente no sítio repetido:
é a pós-mortandelidade, por assim dizer.
O noivo dentro do vestido de mulher
ama todas as mulheres repetidas
nos pátios. Dá-lhes, aliás, lírios, qual rapaz
que à praia não leva relógio.
Atento às areias estelares, conta os dias
com os dedos cortados de uma só
decepada mão,
a que não escreve,
a que treme no cinzeiro
perante o altar da imolação.
E só isto quer que o quer:
um coração e um vestido
e uma Língua e uma mulher.
XXIX
É muito bonito ter olhos de noiva, ser
um lírio num pátio.
XXX
Uma mulher dentro de ti procura-me.
Veja ela por esses pátios se me encontra,
a ver se algum lírio, se algum gato.
A espuma de uma hora, uma ovelha carnal
no espírito lunar da noiva.
Deus longamente subido, longamente geodésico,
cheias do diabo, nunca decrescentes.
A infância afinal frigorífica dos
salmões premonitórios,
nossa carnação laranja de papel-de-seda
em bares do mais cívico alterne.
É muito bonito ter olhos e ter braços,
não asas, que nem asas, nem
orações nem corações,
atento o carácter imobiliário da perda,
ou da perna,
diria o meu tio Alberto, que
morreu solteiro
como todos nós,
dentro de mim,
dele
e
dela.
Viseu, tarde de 28 de Março de 2008
I
Um homem dentro de mim procura-te.
Não sabe quem és.
Eu sei – e não te procuro.
Tenho sofrido muito como um bom cristão.
Ele não, por isso te procura.
Somos tão diferentes, ele e eu:
ele importa-se de morrer.
Quer sofrer ainda em vida.
Ele vai, vê lá tu, de relógio para a praia,
coisa que um homem como eu
nunca faria nem fez nunca,
vê lá tu,
que pode dizer-nos um relógio
perante o mar?
As ínfimas areias, como sabes, contam
estrelas, não minutos.
Temos ambos os dias contados, é certo.
Os dias são como as pessoas nas filas,
as de trás iguais às da frente, é certo.
Eu não me importo de viver.
Trago-o dentro de mim mas é ele
quem me leva pelas finitas ruas,
poços de ar horizontais
de nossos rasteiros voos.
Ele procura-te nas outras mulheres.
Sorri, brande frases delicadas, elas
olham-me de lado, desconfiadas
talvez da minha higiene, não sei.
Sei que ele te procura como um vedor
de freáticas águas de olhos,
nunca te viu nem verá, sei-o eu,
que te conheço e não procuro.
II
É decerto deus – ou o diabo por ele – quem
troca flores por horas na cinzacidade da tarde.
Zunem carros amarelos e vermelhos seus trovões particulares.
Os homens-do-lixo em vez de braços têm asas.
A mulata de blusa verde bebe café de perna traçada.
Era melhor ter tido um amor – pensa aquele velho.
Ansiolitigados disputam trinca de milho às pombas.
Noutros tempos ir para o Brasil era bom.
Em vez de braços têm asas de mosca.
Não sei onde pus o meu livro com gajos do século XVIII:
este gajo dentro de mim põe-me a casa de pantanas.
O Jornal de Notícias diz estas mesmas coisas de outro modo.
Um cãozito mínimo investiga a vida de um relvado,
procede a graciosas assinaturas urinárias:
toda a vida não escreverá outro poema.
Tenho um condão para remexer cinzas.
Remexo cinzas e encontro cidades.
Sou um colector de pompeias
caducas e perenes.
(Se fosse vós, não me riria:
assim é cada dia.)
Um lagarto vermelho: homem com escamosa doença de pele.
Um rapazinho de brinco agrafado ao lóbulo de cera.
Soergo-me na hora passada, pretérita, divina.
Muito gostaria de trocar-te por esta flor
em vez de braços.
III
O meu tio Alberto nasceu no primeiro ano da Grande Guerra.
Dezanove depois, ano da subida de Hitler a chanceler,
cortaram-lhe uma perna.
Em 1977, saiu O Que Diz Molero, fui com ele ver passar
a Volta a Portugal que Adelino Teixeira ganhou.
Três depois, o meu tio Alberto antecipou-se em
quatro meses menos uma semana e um dia
ao John Lennon e morreu no sanatório do Caramulo.
Há quem faça tudo e de tudo para ficar na História,
mas não quero que penseis isso do meu tio Alberto.
IV
Salomónicos salmões de a(qua)viário ao meio fendidos
expõem sua carnação cor-de-laranja-crepuscular
na montra frigorífica do nosso hipermercado
de estimação.
Tarde na noite vamos às compras.
Buscamos vitualhas e gasalhos nutrientes
entre galerias pensadas e prensadas para
pobre gente que como nós trabalha e não tem
tempo por aí além nem por aqui aquém dinheiro.
Gostamos de ver os salmões, extinta estirpe
de nadadores alpinistas, seus olhos em que
a pérola do rio se regelou a pérola de frio,
parentes subidores da dúbia enguia, além, em
latas da Ria de Aveiro.
Apreciamos do porco a venta pré-cozida
embalada em vácuo como as ventas
de quem não lê.
Dou por nós dando às vezes os olhos
à fileira de especiarias, cravinhos e açafrões,
coloraus de pimentões, a canela coentrando
a cheirosa esmiuçada noz-moscada.
Adiante, o pão de série não é para levar a sério,
que a honesto suor de padeiro não cheira,
como antigamente.
Antiga mente é de cada um a nossa, que
no hipermercado demandamos em vão a odorífera
mercearia primacial da infância.
Vale que, quinze minutos antes das onze da noite,
raros são os como nós navegadores de mar enxuto.
Escolhemos o jantar entre congelados e espremidos,
do humílimo agrião à hierática corvina,
um dedo de azeite industrial, uma unha de fiambre.
Ela, da mortadela, sabe que me sabe a infância.
Eu sei que queijo lhe sabe a beijo.
Quando o mundo nos passa um cheque, vamos
na noite hipermercar, mínimos peões do magno xadrez
dos salmões.
V
Só quero isto que me quer: a Língua,
que me faz pessoa portuguesa, um
meio velho que, de quando em quando,
volve a menino
por idioma
e destino.
VI
As nossas vidas são relógios lunares,
ângulos de sombra apontam ponteiros de cedros
aos quartos decrescentes.
Derivamos muito por inclinações montanhosas,
os pés estalidando segundos de poroso cristal,
qual quartzo pedregoso, breve pó eterno de dias contados.
Não me ralo: enquanto tudo for quando, vivo
convosco a Grande Hora Efémera, cinza de ciganos
sazonais brevemente acampados na praia,
sem relógio.
VII
Como vós tenho amigos que sangram,
amigos a quem é possível dar um braço
ao longo do litoral de bares do rio,
numa língua tablada de madeira
onde outrora o operário pescador, a lavadeira.
Sou como vós: sou como voz:
tenho amigos que o dizem por mim,
como nós, sangrando.
VIII
Hão-de colher-te, de ouro e de prata,
ontem.
Não sobrarás
amanhã.
IX
Saem das igrejas e vão comer carne a casa.
Estrepitam fulminantes morais de calendário.
São catolislâmicos, acreditam que a NASA
é um’ONU de estrelas e que Meca, o Calvário.
Acreditam que Deus neles acredita.
Portas de alumínio lhes vedam a casa.
São meus patriotas, aqui na territa.
Islâmicatólicos, ó nus das estrelas, ó micos da NASA.
X
É muito bonito ter olhos de cão, ser humano dentro.
Não adianta nada para a vida, mas é bonito.
Os homens da rua da minha infância ou eram
cães ou não eram homens.
Havia oliveiras, o merceeiro sabia-nos os nomes,
encontrávamo-nos todos em pontuais
casamentos e funerais.
Não sei de onde me perdi, quando, cinzas remexendo,
me desencontro noutra cidade, numa cidade
desprovida de infâncias.
É muito bonito ter olhos de cão na rua,
ao frio e ao vento, as árvores relvadas
pelo musgo do tempo, de uma vítrea baba
de caracóis.
XI
A tarde atira uma flor à cara do mundo:
uma mulher formosa, vê.
XII
É o homem dentro de mim que tens,
não a mim.
XIII
Um floco de espuma faz de ovelha
na colina da minha mão:
tossir espuma de cerveja
faz-me pastor de expectoração.
XIV
Longamente, subido ao monte geodésico, vi as cheias
que estanho eram nos campos da agricultura.
Entretecíamos, os nós-agora-eles de antanho,
uma infância de papagaios de papel-de-seda,
cola de cuspo-e-farinha, meias canas longitudinais.
E viver, então, não era de mais.
Mais longamente vivo agora, de montes exilado
como um viriato pós-moderno, uma coisa com pernas
que demanda as ruas do exílio.
Sou, alado, um dos homens-do-lixo.
(Um floco de espuma na mão: que é isto,
um bicho?)
XV
Era o meu corpo do tamanho de uma mão
quando vi a águia.
Impressa e distribuída pela
Agência Portuguesa de Revistas,
uma águia de
Lisboa-Porto-Luanda-Lourenço Marques.
XVI
De alto a baixo é o corpo feito de águas usadas
mas o que dele conta, ou não, é a residual areia
do fundo.
O mais que há por aqui são pensões e cafés geminados,
em cujos imos é possível adentrar
o mais mulato amor de aluguer para imaginar
outra vida,
outro vestido de noiva.
XVII
Vi a rua vi a névoa vi a cinza vi a gente
de mãos dadas,
nenhum dos dois corpo tendo,
sequer águas.
Éramos ambos areia, ambos
contadores de estrelas.
XVIII
Troca-me por uma hora,
qual flor.
XIX
Não tenho qualquer interesse enquanto pessoa.
Nem sequer falo alto ao telemóvel nas ruas.
Mudo de antena quando dizem o trânsito de Lisboa.
E acho que os olhos são, da cegueira, capicuas.
Não me assiste sequer a redondinha redundância.
Lancho carapau frito a mil desoras.
Entre o ser e o estar, ele há distância.
Deus, ou o diabo por ele, trocou-me as horas.
Não tenho qualquer interesse enquanto cinza
etc.
XX
Tenho um amigo que toca viola-baixo
em bares de rodapé de vulvas desquitadas.
De dia, é oculista. Nas horas vagas,
ouve discos de jazz à base de contrabaixo.
É alto, o meu amigo. Tem um casaco
que furor faria, furão, n’anos 70.
Aos 50 hoje, é um cossaco
de próstata apeada, mas ’inda tenta
a nota certa, coraçãozinho
que a baixa nota é da viola-baixo.
Não sei por onde anda, mas sei certinho
qu’este fim-de-semana é no Cartaxo.
XXI
Nem orações nem corações, por favor.
Estamos todos fartos de versos de bar de fumadores.
O mais é sobreviver, mesmo
que nos chamemos, como este senhor,
Marcolino e que, como ele, voltemos
de graça atrás para mais
duas minis e um telemovilema alto
para o chefe da oficina,
ou o senhor me garante o carro às sete
ou vou marcolinar alhures outras condições.
Não.
Nem orações nem corações.
XXII
Cada vez que estou para tinir versos,
há uma mulher que sabe.
Deve ser porque vibro como uma colher de alumínio
num pires de louça exposto a vibrações.
Não é importante. Não são importantes
nem os versos, nem que eu tina, nem
que ela saiba.
A memória das cidades é feita mais
de engenheiros que redesenham ruas que
de versilibretistas vibradores.
Mas de repente uma mulher
etc.
XXIII
E à flor da boca a flor da Língua.
XXIV
Disponho ainda de algumas propriedades
que partilham com a emoção
o carácter imobiliário:
bens à Lua,
enfim.
XXV
Não me vejas árvore, mas fruto de meu Pai.
XXVI
Alegre inconsciência é a infância
que dizima de si mesma o lírio pelos pátios.
Brune cimento o azul entre gatos
elanguescidos pela do menino terna vizinhança.
Eu fui um menino, eu fui um menino.
Que farei agora de tantos pátios?
Eu sei qu’ele há gatos, mas estes gatos
não são idioma nem destino.
XXVII
Vês? Trouxe-te até aqui pela mão
(e vamos já no XVII)
– e nenhum de nós é corpo,
águas usadas sim
XXVIII
O homem dentro do vestido de noiva
quer ser amado com mão-de-ferro.
Orienta-se mal nas cidades, prefere
hipermercados, onde a mortadela mora
estrategicamente no sítio repetido:
é a pós-mortandelidade, por assim dizer.
O noivo dentro do vestido de mulher
ama todas as mulheres repetidas
nos pátios. Dá-lhes, aliás, lírios, qual rapaz
que à praia não leva relógio.
Atento às areias estelares, conta os dias
com os dedos cortados de uma só
decepada mão,
a que não escreve,
a que treme no cinzeiro
perante o altar da imolação.
E só isto quer que o quer:
um coração e um vestido
e uma Língua e uma mulher.
XXIX
É muito bonito ter olhos de noiva, ser
um lírio num pátio.
XXX
Uma mulher dentro de ti procura-me.
Veja ela por esses pátios se me encontra,
a ver se algum lírio, se algum gato.
A espuma de uma hora, uma ovelha carnal
no espírito lunar da noiva.
Deus longamente subido, longamente geodésico,
cheias do diabo, nunca decrescentes.
A infância afinal frigorífica dos
salmões premonitórios,
nossa carnação laranja de papel-de-seda
em bares do mais cívico alterne.
É muito bonito ter olhos e ter braços,
não asas, que nem asas, nem
orações nem corações,
atento o carácter imobiliário da perda,
ou da perna,
diria o meu tio Alberto, que
morreu solteiro
como todos nós,
dentro de mim,
dele
e
dela.
1 comentário:
" Remexo cinzas encontro cidades", espantoso.. Como é bom ler os seus poemas daniel, linda a sua fotografia em menino, intenso e querido!
Lindo. Bjos, poema intenso, imagens
inventadas numa buffarra de espuma...a fazer de ovellha na sua mao. LM
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