06/10/2007

Dois Pedidos





I

(0. Pedido – I

Leveza e beleza
ainda

esta manhã.)

1.

Na morte dos outros
ir aprendendo a ler.

2.

No quarto dos livros
um relógio parado.

Mentiroso, ele, como eles.

3.

Manhã.
O sol amarelo e branco
como
o cão da minha vida.

4.

Exsuda o corpo
água, leite, licor:

garrafeiro de versos.

5.

Entra na pastelaria a mulher louca.
Este corpo entre nós.

Entre quem, o pensamento?

6.

Nada morrer ainda.
Viver tudo já.

7.

A jóia do amor
no estojo do sexo.

8.

Perdoa-me
o que sei,

não o que ignoro.

9.

Movido, comovido e feliz
como uma árvore ao vento

quando te recordo,
senhor.

10.

Meu Pai e minha Mãe
fizeram aquilo:

isto, que escreve.

11.

Antes de crescer para sempre,
levou-me Huckleberry Finn
em seu bote fugitivo.

Fugiu ele, afinal, só.
Eu fiquei, negro e escravo.

E vivo.

12.

D’este, vivo perfil italiano
de rapariga na pastelaria.
Beatriz? Isabel?

Portuguesa. Maria.

13.

O jogo do mundo:

nenhuma regra,
nenhuma vitória.

14.

Gerem as nuvens
luz e sombra.

Assim os amigos.

15.

A nossa pele:

mapa 1:1
da nossa vida.

16.

De vilipêndios
compêndio

também

a nossa vida.

17.

Quem negar pode
o animismo dos objectos

o faça

e se desfaça.

18.

Preta-e-branca a vida a rancores.

19.

A cara ao espelho

por outros tantos olhos
olhada.

20.

Homem em pátio crepuscular:

cada um.

21.

Mulher:

todas uma.

22.

Em todo o verso, todos os mortos, alguns vivos.

23.

Amanhã, como se ontem
nunca.

24.

Desavindos,
partilhamos lixos.

25.

Lisboa.
Lis.

26.

Eu às vezes entro na boîte do desespero
mas ouço música.

II

26.

Numa gaveta da cozinha
estão deitadas as facas.

Mas não dormem.

25.

Na impossibilidade de me deslocar no espaço tanto quanto me gratificaria, tenho em casa publicações antigas de décadas que me levam. Quase sempre está de chuva, quando assim viajo. Em redor da casa, os animais recolhem-se sozinhos às cortes. As árvores lavam-se, levanta-lhes as asas o vento dispersor de pássaros e palavras. Não preciso, então, do coração. Os olhos me bastam para usar a maquinaria da publicação rural de 1915. Nutre-me a esperança de que vingue, no plano internacional, em 1968, a carreira de António Calvário, o nosso Adamo, a quem não assustam as letras em castelhano, francês e italiano. Os olhos me bastam para chorar o luto por um menor que se chamou Manuel de Pinho Gomes e se afogou, aos 12 anos de idade, nas águas do rio Antuã, na freguesia de S. Tiago de Riba Ul, corria Julho de 1969.
Assim vou e assim regresso, a tempo, a casa, à minha vida. E o planeta voga nos anéis orbitais da total indiferença a viajantes e a publicações, as antigas como as modernas, os mortos como os vivos.

24.

Como um aplauso brusco, a revoada de pombas
enche a praça da rápida eternidade de Deus.

23.

Muito me acontece ter pela frente a vida
como perante a tília se sustém o peregrino.

Partilhamos a fadiga e o pó e o sol e a passagem.
A tília e a vida ficam, nós não.

Acontece então a outros.

22.

Os meus pés são iguais aos pés do meu irmão
as minhas mãos não desmentem a maternidade de minha Mãe
às vezes olho com o olhar do que se foi embora
parto o pão como o partem as filhas.

Só a mim não sou idêntico
ou sequer semelhante:

pois que ser um
é intervalo
entre antes
e adiante.

21.

Mais que a tarde parda, parda é
a eminência do coração.
Antiga parede de fresco caiada,
uma nota rodap’azul aos pés,
a lonjura de sobreiros mortos de sede
nas costas eminentes, solares,

pardas.

20.

Com gramatical pinça descolo do mundo
os fotogramas que, tratados com delicadeza,
à tona d’água afloram o dito fundo
de mim e dos outros, ah pois concerteza.

19.

A filha desta senhora é um relógio tão bonito, tão
mortal,
também.

18.

A palavra busca-te, topa-te, deixa-te.

17.

Em motéis de auto-estrada, a 7e500 a noitada,
inscrevem casadas e divorciados certos lirismos
depois não constantes do sol da herdada,
que para algo servem os autoclismos.

16.

Já levei junto a barragens a minha boca.
Do que deixei visto, trouxe a língua.

15.

Quando cheguei, trazia comigo
o pessegueiro enferrujado do pátio
a que se acolhiam o meu cão e o meu Pai
quando Santa Bárbara não rezava.

Muito vi chover na infância.
Chovo eu hoje nela, bárbaro.

Não santo.

14.

Deixou-me o meu Velho
por herança
todas as palavras.

Riqueza:

não consigo gastá-las
todas.

13.

O meu Velho me deixou.

12.

O meu Velho deixou-me
por herança
as palavras todas.

Riqueza:

não conseguira gastá-las.

11.

Deixou-me o meu Velho
herdade
de todas as palavras.

Outra vida tivera
o mesmo deixara.

10.

O meu Velho deixou-me
todas as palavras.

Outra vida eu tivera
não as gastara.

E outra vida tenho:

a dele.

(9.

A gente só quer um leitor.)

8.

Crepita às vezes o telefone seus brasidos
do rubi do fogo da voz há estalidos
centelha a locução seus sintagmas.

Crocitam as vozes imagens vagidos
nós temos andado no mundo perdidos
perdidos ao frio ao gelo aos magmas.

7.

Um frio corria por baixo dos pés
eram os anos 60 éramos nós meninos
ginjas de bufete cançonetavam os clubes
e lennons penteados ’inda sem japonesas a tiracolo
loveávam-nos yeah yeah yeah.

Depois vieram os cravos e os assessores
e a China a fazer de América.

Yeah yeah yeah.

6.

Um bom fim de dia bom
é quando entramos no mar
e o mar nos chama puta.

Digo eu
que sou homem.

5.

Estudei alguma fonética em tempos.
Se os dias me fazem vibrar
as cordas vocais
dias consoantes são.
Se não,
orais.
Sim, são.

4.

Falei com o moço que guarda as estrebarias.
Ele calça da condessa as botas de couro pago.
Madrugadas verdes cinzam sem despertar.
Ele bebe aguardente na folga única.

Eu tenho outra vida que não ter queria.
Eu queria ser moço de estrebaria.
A gente quer ser outro homem.
Pega-se num poema e é-se-lo.

3.

Estou outra vez no pátio, Pai.
Recomecemos.
Os bichos querem comer.
Tu tens comer para os bichos.
Nada te faltou jamais:

nem mulher, nem gatos, nem cães.

Só tu não compareceste à parada
que te chamava:

em tuas duas alturas de coxo,
entre gatos e sargentos,

pouco dado a guerras que não fossem
a interminável tua,

a que te matou

e de mim te levou.

Não te preocupes:
só tenho uma gata,
tenho comer para ela.

2.

A gente trabalha para isto:
é uma terça-feira, já choveu,
uma menina aborrece-se contra a vidraça:
mosca da nossa vida,
nossa filha,
nós o Pai,
nós os deuses da chuva.

1.

Não
o menino não voltou
não a esta casa
a esta casa que ele vai lembrar
como a casa
a que volta sempre
desde
que não voltou
o menino
não.

(0. Pedido – II

Esta noite
nem

sorte nem morte.)



Palavras todas: Caramulo, manhã (I) e tarde (II) de 5 de Outubro de 2007
Foto: Caramulo, casa, 13 de Agosto de 2007

2 comentários:

Manuel da Mata disse...

Caro Daniel,
A vida toda em tão poucos versos. Admirável.

Abraço firme.

Anónimo disse...

De ficar sem ar.

Canzoada Assaltante