23/08/2022

H EM BUSCA DELFIM - 77 a 89

© DA.




77

 

Algum lance-d’-olhos de mulher beneficiada

de sua mesma formosura, jamais igualada.

Ela e um quarto de hotel (daqueles antigos)

& uma noite revoluta; de manhã, como amigos.

 

Moras onde? Aonde vais de costume?

Incendeias-me de frívolo & vil ciúme.

Pariste já de alguém? Já foste mulher?

Ando deserdado, passo o tempo a ler.

 

Nesta Cidade morrerei sem conhecer-te.

O facto é que namoras com o Gil dentista.

Eu sou pêlo-de-cão, já não uso crista.

Fino-me nestes versos que (ab)uso escrever-te.

 

Recordo (alquebrado) alegrias infantis,

muito tempo anterior a este meu-d’anis.

Mas onde a Eva, tipo a marroquina

que namorei à janela dando para a esquina?

 

(Este não é um poema de busca-femeaço,

digamo-lo propício ao uso de bagaço.

Estas são estrofes para a desconhecida

que talvez ’inda me guarde um resto de vida.)

 

Já antes conheci fêmeas (algumas, honestas).

(Já troquei humores com algumas destas.)

As outras emerdaram-me, só lograram agrura.

Não valiam a pena, o tostão, o verso, a aventura.


 

78

 

Tenho-me deparado, em estes mais recentes tempos, com muitos (demasiados) casos de sofrimento urbe-humano. E nota bem, meu bom Delfim, que tanto me refiro ao padecimento físico como ao idem mental. A par disto, estou muito mais vulnerável ao canto das aves. Escuto-o até dormindo. É um quadro deprimente, não posso negá-lo. Laboro as oito horas diárias pró-ganha-pão, isso sim – mas nem a literatura me tem resgatado destas horas-más. Procuro na churrasqueira da minha terra alguém com quem trocar palavras a-propósito-disto-&-daquilo. Nem sempre encontro tal alguém. Recolho-me ao Quarto-Casa o mais tarde que posso, ergo-me de manhã cedo, faço-me à existência, não nutro nem aleito ilusões de qualquer espécie.

 

Lateralmente, há a situação do meu Irmão tão doente.

Situação sem melhoramento nem retorno possíveis.

Condição involuindo a olhos-nus-&-crus-&-cruz.

Nenhuma luz.

 

Tempos pressagos, estes. E aziagos. E sem oragos.

Envelhecer sem envilecer é o meu único propósito.

Nem sonhos nem expectativas.

Apenas ir exercendo as forças(-ainda-)vivas.

 

Sim, demasiados anos indivíduo-pessoais de sofrimento.

Escuto-os, ausculto-os, miro-os, admiro-os.

Muita perda & muita merda. Famílias desavindas.

Agros desquites, filhas que não falam aos pais.

 

Esta manhã, choveu um pouco, apanhei alguma água.

Derivei entre aves-cantoras & rostos-sem-apaziguamento.

Cearei a sós, exposto à saciedade sem fartura.

Penso que não receberei telefonemas, sequer poemas.

 

Já não são (nunca foram) meu assunto, sabes quê/quem, Delfim?

Já não são meu assunto as raparigas dourando-se nas praias.

Nem as crianças inocentemente felizes ao verem-se nadas.

Nem os grandes lexicões explicando línguas multisseculares.

 

Toco-me ora a triste trote, chouto passadas alquebradas.

No fundo como à flor, não de passo de traste – até mobiliário.


 

79

 

Vi neve azul em sonho particularmente desamparado.

Encontrei depois um homem chamado Í.

Soube do desespero dele, marejou-se-lhe de sal líquido o olhar.

Sinto algo semelhante ao desconcerto vital de Í.

 

Desconcertei talvez irremediavelmente esta passagem.

Digo: esta passagem chamada existência.

Não há fármacos para tal moléstia.

Há só que endurecer o coração, ser vil, desamar muito.

 

Veste de verde aquel’além tão bonita senhora.

Gostaria de vê-la penteando-se a um espelho-de-água.

Penteando-se devagar, mesmo não pensando em mim.

Tendo aves aos ombros, olhos virentes, sandálias violeta.

 

É tonitruante a geral insensibilidade.

Deparo-me com pessoas mais sós do que o faroleiro.

Afecta-me muito um mundo sem palavra-de-honra.

Muito azul era a neve – e será – de meu desamparo.

 

No lar, o lume, a panela de ferro, o caldo apurando-se.

Gente nossa residindo-nos até por dentro.

Criar crianças em recinto seco & fresco.

Ter um quintal, vê-lo maravilhado de luar.

 

Mas não. Nada disso já. Isso já foi, lá vai, não volta.

Agora, latas-conservas num roupeiro, camisas crucificadas por cabides.

Dormir a sós, água à mão pela madrugada. Pouco ou mais nada.

Um emprego até Setembro, venha o que vier, dê o que não-der.

 

Hermínio vê neve azul em sonhos febricitantes.

Os anos são rápidos mas lentas – imóveis até – as horas.

Impiedade da indústria, malevolência do humano engenho.

Uns poucos livros por tesouro, algum afago recebido & dado.

 

Morre-se pela boca como o peixe, r-existe-se porém pela Língua.

Hermínio comunga com Delfim a Língua Portuguesa.

Mirífico idioma milenar, ouro alquímico temperado.

Maravilha de pobres insensatos que A dão a maus-tratos. 


 

80

 

Às três horas da tarde de um dia sem data

Vi enlouquecer uma mulher na Fernão Magalhães

 

Ela pôs-se a uivar a uma lua que não havia nem a via.

Por ser de tarde brumosa aquela altura do dia

 

Creditai-me, senhores, minha assombrada aflição

Ao sentir tal senhora em essa tal condição.


 

81

 

Imbecis poderosos regem a realidade quotidiano-mundial.

Todavia, sigo ajudando Í. como/quanto posso.

De tal, resultar-me-á certo prejuízo laboral.

Todavia, ser humano é meu & humanamente nosso.

 

Não. Não recuarei. Podem decerto despedir-me à cabeça.

Podem degolar-me o mísero salário que aufiro.

Mas tirar-me (d)o que sou, ah carago!, não tiro.

Esta é que é tal-qual esta, tal-qual essa.

 

De resto, amargura & incerteza, velhas minhas irmãs.

Deixei-me há muito de esperar vãs esperanças.

Os imbecis mais poderosos não foram jamais crianças.

E eu imbecilizo-me menino que gosta de manhãs.

 

Adormeço em cont(r)a-corrente há mil anos – ou menos.

Enfeudo-me sentimentos que nada procriam, destroem apenas.

Afago da irreal amásia as caracolantes melenas.

E versejo à doida os ócios, que de negócios sou somenos.

 

Amanhã, pelas onze horas, Í. pode conseguir tecto.

Oxalá que sim, o consiga, saia de onde o prendem.

As motivações dele? Poucos serão que as entendem.

Os imbecis poderosos urdem o futuro mais obsoleto.

 

Tenho por meu o resto do entardenoitecer.

Pouco mais deveras por fortuna hei.

Podem despedir-me na quarta-feira, pode vir a acontecer.

Não podem empobrecer-me de mim, isso eu sei.

 

Sob as ramalhosas tileiras, ao zéfiro em frescura.

Eis-me pensando em nada, que é quão tudo vale.

Amo quanto resta de Natura.

A minha é de nome Portugal.


 

82

 

Falo-te, bom D., de Idalécio Pragana Rusga Galante.

É pessoa que há pouco tive por diante.

Conversámos, desporto que vez cada mais me apraz.

Idalécio é da nossa idade – e, mais, mui bom rapaz.

 

Desejo-lhe saúde & diminuta infelicidade.

Ele conhece mais bem que nós os meandros desta Cidade.

Vive na rua, dorme sob o viaduto.

É bem mais esperto do que fero ou bruto.

 

Conheço-o de copofonias recentes.

(Ele, só a tintos; eu a tão-só aguardentes.)

(É verdade que apenas cervejámos.)

(Mas foi com aquil’d’acima que mais conversámos.)

 

83

 

(Procuras a salvação no salário-mínimo.

Um centro te dá comida, massas, arroz & habitação.

Pagarás dez vezes, por morte, tal dízimo.

É natural do nascido a dizimação.)


 

84

 

(Não trouxe hoje pão para as minhas urb’aves.

Trá-lo-ei amanhã, se lograr ganhá-lo.

Admiro a nobreza natural do cavalo.

Não conheço é porta nem porto eu chaves.)


 

85

 

O rapaz N. admira-se de eu escrever tanto em o Café que frequentamos ambos diariamente (encerra-aos-domingos). Digo-lhe que são-coisas-a-fazer-de-que-me-não-devo-esquecer. (Minto-lhe, portanto.)


 

86

 

Morrinhenta & cozinha-inoxmente amanheceu a quarta-feira.

Saí da labuta (tristonha, maninha), eram as oito quando.

Ouvirei esta tarde Maria Colectiva Anceriz Fradéu

& Amília Nenhures Mulherana Marrano.

 

Não sei que seja mais sufocante: se a humidade, se a humildade.

Picardias maldosas entre co-lab(o)radores. Onde? Onde?

Numa instituiçãozeca sem ética nem moral, só portal & retrete.

Prefiro-lhe, de longe, ao longe, barcos escrevendo.

 

Barcos escrevendo a linha azul do horizonte, em instante.

Não cheguei a receber à linha cada soneto de cada derrocada.

Problema (já) nenhum: o anzol não pensa, o peixe também não.

 

Oh as pessoas! Oh os combustíveis!

Oh ser sardónico para com as-da-limpeza!

& oh minha limpa, minha morrinhada tristeza.


 

87

 

E a realidade acontecendo toda feita pelos Outros?

A gente diz-que-não-que-não – mas no fundo…

E quando a manta é longa mas os pés, tão curtos?

É questão de ir crescendo, minguando, lunando velhilúnio…

 

Hermínio escreve a Delfim, é impossível não fazê-lo.

A moça de unhas lacradas a escarlate é já cinquentona.

Sai do minimercado o viúvo do sexto-andar.

Oh os combustíveis-fósseis! Oh as pessoas-idem!


 

88

 

Esmonco-me & desranhoso-me com lençoleta papeleira.

Ronco aflição arterial, da de natura gripina.

Ando assim faz dez dias, é uma frioleira.

E, tússico, morrinho, escarninho, a matina.


 

89

 

Perdi versos como me perdi de versos.

Nada me custa já, que já não pago.

Isto de pensar (sem) as coisas – é o carago.

Tudo é tempo-espaço a trecho esparso.  

 


 

Sem comentários:

Canzoada Assaltante