22/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 74 a 76

Romaria ao Espírito Santo

(Coimbra, 1943)




74

 

Sim, penoso & angustiante foi o dia de ontem. Já porém lá vai, escoado pelo sumidouro mortífero da passagem-cronos. Hoje, não tão mal. Visitei M., que convalesce precariamente de sua virose. A meio da tarde, reencontro-me a sós, tendo por única companhia a minha sombra mesma. É a minha condição.

Arrefeceu. Ainda me não passou de todo a tosse cavernosa. Faz hoje um mês que entrei no emprego. O contrato dura até 19 de Setembro próximo. Depois, a incerteza. Muita mais gente vive idêntico desamparo – mas cada um sabe de si.

Padeço (isto é certo, não minto) de hipersensibilidade quanto a toda & mais alguma coisas.

Aflijo-me com aspectos que a muitíssima gente passam ao lado.

Doem-me os deserdados pedindo cêntimos nos semáforos.

Doem-me os animais abandonados, na estrada estropiados.

Desconsola-me sempre o espectáculo da ignorância atrevidota.

Aleijam-me a sério as sevícias sofridas pela Língua Portuguesa nos meios-ditos-de-comunicação-social.

Para mais, as superstições institucionalizadas campeiam impunemente.

A política é espantalha.

A alienação futeboleira é reles.

A facúndia presidencial enche-me de urticária.

O parasitismo das subvenções-parlamentar-vitalícias enoja-me sem retorno.

Rompe-me o escroto o politicamente-correcto.

Pior: agora pré-sexagenário, não descortino grande autoprotecção contra a ruindade de um planeta sem alternativa.

Sim, sou um menino-anacrónico – crónico & anacrónico.

Miro fotografias de tempos idos.

Os meus Pais mocíssimos na década de seu casamento, que foi a de 40/XX.

Aquela ocasião em que foram de romaria à Feira do Espírito Santo.

Quando subíamos (éramos vivos todos) aos moinhos de Lorvão.

Estou só.

Deito-me na cama que me (des)fiz.

Leio devagar quantas horas posso.

Assisto às existências alheias – às quais sou invisível.

Passei ontem na minha Rua (mora lá a irmã do meu Amigo Delfim): tudo fechado, nenhum comércio, nem uma persiana descerrada.

A minha patermaterCasa: em ruínas.

Nem sinal do meu Cão Amarelo.

Longe, roupa a enxugar no primeiro-andar do prédio cujo rés-de-chão é o Café Danúbio (Rua do Padrão).

Veículos de mercadorias, mulheres-a-dias.

Cinzentura geral de perspectivas.

Sobra-me um dente natural – os demais são de resin’acrílica.

Vou quarta-feira rever, sem o reaver, o meu Irmão Zé.

Autocarros carregados de subassalariados.

Trivialidade & banalização da violência-doméstica.

Tráfico de droga à fartura toda.

Banqueiros gatunos.

Ex-governantes corruptos até a medula.

Podridão das noites disco-boîteiras.

Arredores socio-cancerígenos da Grande-Lisboa.

(Idem Grande-Porto.)

Livros de merda consumidos em massa por leitores de merda.

Simplismo autisto-facilito-pauperizador dos exames do ensino-secundário.

Global anemia intelectual da maralha universitária.

Mais simples seria a vida evitando o evitável.

Um regato a cuja margem me recolhesse sem destino.

Álea de cedros & pereiras-de-inverno guardando o século.

O meu paterAvô de bicicleta daqui a Antuzede.

Ninguém ter fome, ninguém ter sede.

Ninguém dormir ao relento sob cartões-frigoríficos.

Nenhuma opinião obrigar a tua a sujeitar-se-lhe.

Alguma mulher lavada, de boas palavras não-sentenciosas.

Filhos infantemente prósperos brincando sem coleira-electrónica.

O milagre dos livros-bons devindo côdea-nossa-de-cada-dia.

As praias doiradas, ébrias de azul tinto de verde.

Noites maritais urdindo a suma cumplicidade de dois.

Ninguém se dar ao luxo de morrer por enquanto.

Pessegueiros vivos como diademas de luz-açúcar.

Laranjeiras como ourivesarias verticais.

Mas: João A.R.A. não tem ilusões quanto à sua companheira.

Ela vai morrer mais-dia-menos-dia, é fatal sua moléstia.

Hermínio conversa com João, batem surdos instantes.

A churrasqueira serve refeições populares, haja moedas q.b.

Passam os expressos-rodoviários em todos os sentidos.

Levam gente que desconheço rumo a sítios que não povoei.

Pronto para o que der & não der, vier & não vier.

Está M. doente, quero tão-só que se recomponha.

Passa a carreira de Cantanhede, terra dos manos Cortesão.

Passa também a de Mira, onde se veraneava Delfim.

(Também Hermínio passa, vai passando, que voltar não volta.)


 

75

 

Não minto quando digo que já conheci a bondade alheia.

Ou quando recordo olhos bonitos em rostos para mim perfeitos.

Trabalhei oito horas, ganhei para a ceia.

Levei alguém ao médico, ali nos prédios estreitos.

 

Vi o salazarista na tasca do S., ali à Rua das Rãs.

Conversei com dois gentios que devagar se avinhavam.

Regressei por aquela rua onde antigamente moravam

J.M. & L.A., mas antigamente há décadas de manhãs.

 

Fui o triste de costume, chateei ninguém, cumpri horário.

Faltam-me tipo onze dias p’ra receber o salário.

Preciso de óculos novos, de sapatos também.

(Mas já não tenho Pai nem já tenho Mãe.)

 

Leocádia surge-me em sonhos, vaporosa rosa.

É de vastidão ventral, d’amplo delta erótico.

Problema: é casada com o doutor Barbosa,

mui rico este é mas também esclerótico.

                                      

Sim, fui utente já de alguma alheia bondade.

Hoje-em-dia a não caço, sequer a procuro.

Eu ainda tenho passado, só não tenho é futuro.

Sou uma só-sombra por meandros da Cidade.

 

Se ando zangado? Não ando. (Ou julgo que não ando.)

Isto é de feitio, que eu botas não lambo.

Verga-me tão-só a porra da melancolia,

que me acossa & caça de noite & de dia.

 

E quando fui núbil? E útil? E volátil?

E era de vint’anos, elástico, retráctil?

Já lia bons versos, já com demora escutava

a pessoa que m’em frente para mim falava.

 

Fumo cigarros em Coimbra, recorro a autocarros.

(Por enquanto ainda ganho p’rò passe & p’ròs cigarros.)           

Tenho conservas no quarto amail’um candeeiro.

Neste livro sou Hermínio; de resto, Daniel Abrunheiro.

 

Urdo este livro em perfeito espelho-de-inutilidade.

(Não vejo que interesse à geral vacuidade.)

Sofro o meu Rodrigues Lobo & o meu Sá de Miranda.

E no Louriçal fiz parte (a clarinete) da Banda.

 

Operários-a-termo-certo ocupando pensão-quartos.

(E os riquinhos-ricaços cada vez mais fartos.)

E as nossas donzelas envelhecendo ex-mães:

& órfãos sem manteiga nem sombra de pães.


 

76

 

Aqui onde me vês & lês, ó gentil Delfim meu Amigo,

lês & vês um homem que de seus errantes, erráticos & errados

pretéritos é involuntário contemporâneo próprio.

 

Pelas ruas miro os demais cidadãos por enquanto viventes,

as aves que embelezam a urbe tão envelhecida

a meus olhos, que rejuvenescer já não podem.

 

As noites devieram néon-tristes, nada me as resgate,

janta-se a sós ante o televisor embrutecedor,

aliena-se o solitário da humana empatia d’antigamente.

 

E agora como vai ser?

(Pergunta tinta de perplexidade.)

É um agora por escrito proscrito.

 

 


 

1 comentário:

Thiarles Soares disse...

"Livros de merda consumidos em massa por leitores de merda.

Simplismo autisto-facilito-pauperizador dos exames do ensino-secundário.

Global anemia intelectual da maralha universitária.

Mais simples seria a vida evitando o evitável."
Um resumo do mundo suscinto. Parabéns!

Canzoada Assaltante