08/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 40 a 45

© DA.




40

 

Na tarde calorenta, Hermínio fuma à sombra. Esplanada aprazível de café de bairro. Chávena vazia, como a hora mesma. Um livro de Graham Greene à mão. Visita o Irmão doente às 17h30m desta quinta-feira. Tarde de diáfana limpidez. Vozearia alheia: velhos conversando, deles a gaguez mnemónica. Um cão dormindo, à sombra ele também. Neurónios de Hermínio: acalmados à força fármaca. Tremura manual, precária caligrafia. Muitíssimo boa, sempre, a escrita de G.G. Laboralmente falando, H. tem o dia ganho: trabalhou das zero às oito horas. Fará o mesmo quando soar a meia-noite próxima. Folgará, depois, por três dias consecutivos. Certa boa-disposição resultante de tal antecipação. A tremura das mãos incomoda-o, fá-lo punir-se em vão por os pretéritos (que não de todo idos) alcoólatras. Fá-lo revisitar imagens, mormente de mulheres que não valeram a pena. Assobia para dentro. Tem dívidas por liquidar.

 

 

41

 

Grande Delfim:

 

Em vez do castiço ramo de loureiro, esta tasca tem, uma de cada lado do umbral, gaiolas. Estas contêm um passarinho cada. Não sei a que espécie pertencem. Ou antes, sei: pertencem à espécie chamada dono-da-tasca, vulgo S(…). Costumo vir aqui curtir a tristura crónica dos domingos. Ambas as avezinhas são policoloridas – isso são: e cantoras de maravilha também. Sento-me na cadeira da rua e deleito-me escutando-as. Já a fauna bípede, bem, essa é da espécie fina-flor-do-desperdício-orgânico. Putas, chulos, subassalariados, dormidores-de-rua, poetas & demais mitómanos. Trafica-se tabaco daquele que faz rir, cheirando a viela a miasma marroquino & a mijo de felídeos. Sento-me aqui, penso no que de quando em vez me dizes, antipatizo há muitos anos com a vacuidade dominical, gosto dos outros dias, dos domingos não, há muitas décadas que não, nada. Versos nenhuns me têm sitiado por estes dias. Leio Carlos Fuentes depois de Graham Greene, dou-me muito bem com a leitura dos gigantes. Gasto(-me) mais aos domingos, não sei nem hei como evitá-lo. Não vivo em ou com família. Como os passaritos-canoros acima referidos, habito uma gaiola. Canto a sós, ninguém vem escutar-me a melopeia entristurada. Também visito o meu Irmão, que para sempre está internado em lar especializado em terminações. Versos nenhuns

Etc.

 

 

42

 

“Técnico intermédio de apoio social”: eis o que sou (ou faço) deste 20/5 pretérito & até 19/7 próximo. Faço turnos. Amanhã, folgo. Terça, trabalho das oito às dezasseis. Reingressei, pois, no tecido-vivo dos lab(o)radores-contribuintes. Ando a poupar para um par de óculos novo. São caros. Lentes-progressivas, trezentos ou mais euros. Não posso conduzir com estes baratecos de ver-ao-perto que me custaram vinte euros apenas. Os passarinhos do S(…) são magníficos cantores.

 

 

43

 

Palmilho a penates a Cidade a que pertenço. Sinto andarmos todos por um fio. Decorre da condição de nascidos – novidade nenhuma, portanto. Talvez uma mulher me falte, já não sei se, Delfim, será mesmo assim. Turistas em barda de bar em bar. Fotografam o very typical. Bibelôs de cortiça, cêdês de fado-coimbrão, pastéis-de-Santa-Clara, galitos-de-Barcelos, miniaturas da Torre-da-Universidade, canecas dizendo I-(coração)-Coimbra-Portugal. Casal negro regressa ensacado da hipermercearia. Bêbados brancos (& sexagenários) riem-se na viela, talvez felizes, venha cá eu saber se sim se não. Planeio: apanhar o 5, ir à minha terra suburbana, ter com quem converse & beba um pouco. Todos temos nece-Cidades.

 

 

44

 

(Agredir de rosas a mulher desejada

Untá-la de seminal mel em fervor

Refutar dela a passada vida-passada

Ter algo que dar-lhe, sei lá, tipo-amor.)

 

 

45

 

Cantam maviosamente as avezitas

Engaioladas como o foi Oscar Wilde

Por crime hoje incompreensível

Ontem & amanhã convivem muito.

 

A Graciete manda muitas saúdes

A Mercedes Viúva espera a chuva

O Nuno anda nas obras & é de virtudes

Do cacho se aproveita pouca uva.

 


 

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Canzoada Assaltante