25/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 100

© Alfred Stieglitz




100

 

H. diz ainda a Delfim que:

 

Bom Delfim, não ando-desgraçadinho-no-gamanço

nem pego-na-lancheira-e-vou-levar-o-almoço-ao-pai.

Adoentado sim, ando: facilmente me canso,

paro a meio das escadas, descaverno de mim um ai.

 

Falta-me, como a de António Nobre, a delicadeza.

Falta-me, como a de Cesário Verde, a subtileza.

De um & d’outro não me falta todavia a tristeza.

Ai não, não falta, podes bem ter a certeza.

 

Já só mui pouco desta vida escarneço.

Posso o que posso, meço o que mereço.

Atafulho-me de angústias irrisórias.

Meto-me em contos, enredo-me de histórias.

 

Sei já que jamais me irei de passeio a Paris.

Quebrei muita janela, bebi muito anis.

Não é que me apeteça sair do meu País.

É tão-só um já-lá-não-vou, um diz-que-não-diz.

 

Insula-se-me uma tal vontade de desmorrer,

que dias, Delfim, há que nem te sei dizer.

Quando logro, feliz, dormir em profundidade,

então sim, não queimo febre, vinagre ou saudade.

 

Mói-me o sentimento, isso sim, de impotência.

O meu Irmão vive, por assim dizer, noutro neuroplaneta.

Sangue-do-meu-sangue, sua doença é-me violência.

E eu não posso ir-me-de-putas, nem sequer uma punheta.

 

Tempo há de mais que me não vou à praia, eia!

A certeza de morrer, júbilos me não franqueia.

Quanto a Virgínia Moço de Teles e Correia,

essa sabe-a toda – mas olha, eu também sei-a.

 

Habito, por assim dizer, meu abstracto Duíno.

É tal a parangona de meu mesmo destino.

Pecado-capital é a depressão-crónica.

Isso – e o beber gin sem água-tónica.

 

Proíbo-me a alegria indiferente.

Deixei já de crescer para ser gente.

Não sei que deste Julho (des)fazer.

Talvez nem fôra desassisado morrer.

 

Pois sim, pois não: há que ser-se, de nome, legião.

Dia 4 próximo, aí está de volta a Rainha Santa.

A muda procissão barafusta & canta.

Lamento porém toda & qualquer religião.

 

Deveras, nem em panteísmos alinho.

O mundo é solidão & eu, sozinho.

É como rir sem dentes, cantar sem voz.

É como a orfandade de todos nós.

 

Por amor aprofundar uma senhora

não é palha já de minha manjedoura.

Reviro-me outonal, pagino as folhas

das tílias & das minhas tão más escolhas.

 

Por que são avenas-frautas as canoras aves?

Mãe (ou Delfim), por que não hei bonanças mais suaves?

E por que me (des)faço H.-em-terceira-pessoa?

E por que não singrei quando em Lisboa?

 

Nem a Londres jamais irei, como penso ter ido Eça.

Para já, por aqui – mas não tenho pressa.

Perdi-me de alegrias a 23 do 5 de 86.

E não cumpro rainhas nem por mil-réis.

 

Ainda não sei que noite serei esta manhã.

(Sei não ser mau o verso recém-anterior.)

Acordo quando ainda nem anoiteceu alvor.

A minha Mãe foi sempre Mãe, nunca mamã.

 

Odes vitoriosas (ó heróis!, ó rosas!) que ninguém lê

– mas que cada dez-de-junho, sabe você?

(Glória-a-Deus-nas-alturas

& que os bêbados não sofram securas.)

 

Não é a verdade que já só desame.

Juro-o pelo meu cancro & p’lo meu derrame.

Sineta-campainha de tabelião-de-hotel,

toca-toca-toca-toca, vai acordar o (Zé) Daniel.

 

Põe-me uma cesta fresca de fruta no quarto.

Por sete contos & quinhentos, quarto em motel.

Sineta-campainha (inha-inha, eu vou dar-to).

Toca-toca-toca-toca, tu tem cuidado, Daniel.

 

(Fui já da era de príncipes-encantados.

Era ela de azuis olhos, maravilhosa.

E eu fui de gestos desnudados.

E ela floresceu em toda-rosa.)

 

Posso eu, Delfim, pedir-te que pagues

por mim as dívidas que hei contraído?

Não posso. Nem quero. Olha, sabes?,

q’mais bem te faças distraído.

 

Vejo homens envelhecendo de nicotina-maneira.

Fumam ante aves distantes – pensando em seus-antes.

Antes ser funâmbulo, desses de arame-bebedeira!

Antes andar-no-gamanço gamando meliantes!

 

Quem não se sente logrado com religiões?

Quem aos sacões se faz de senil?

Eu nego Deus com estes dois palavrões:

LEUCEMIA INFANTIL.

 

Ainda não sei que hoje serei amanhã.

(Os amigos são poucos, levam-se as suas vidas.

E eu padeço de maneira malsã

de dúvidas &, por, de dívidas.)

 

Dorme um pouquinho, H., dorme, porquinho.

Nenhuma mata-púbica te espera em leito.

Vint’euros a puta? Por dez, faz-se um jeito.

Depois do afã-coito, todo o bicho é sozinho.

 

Post-coitum-omne-animal-triste-est,

assim como as novas da guerra-no-Leste.

O meu guarda-roupa nem guarda nem rouba,

que eu hei-de ir desnudo levado para a cova.

 

Dizias-me tu, Delfim, de tua boa Mãe.

Bem te percebo: passei por isso também.

Também Pai já não hás, esse maroto rapaz.

Juntarmo-nos a ele(s), é mui bem capaz.

 

Ó licras manhosas! Ó insidiosas vaselinas!

Ó rapazes-com-moços & moças-com-meninas!

De tudo isso, belezas, me arredei

no dia de ser velho, o qual já não sei.

 

Neuróticas pseudodoutoras regendo lares-de-velhos.

(Mas, apesar delas, manhã de cravos vermelhos.)

Viva para sempre o Capitão Salgueiro Maia!

(O Diabo faz-se fêmeo & arrasta a saia.)

 

Yo no quiero morir – como naquele filme do monhé.

(Sei bem o que dizia, sei bem o que isso é.)

Floresce portanto a novel sexta-feira.

Finge-se toda nova, como por brincadeira.

 

Roubo & derrubo-me: história antiga.

(O facto é a memória não ser a minha melhor amiga.)

Podes ser decente sem ter de ser resplandecente.

Podes nascer amanhã na noite mais recente.

 

Constantino, o imperador converso à cristandade?

Ou Constantino, o brandy tomado à saciedade?

Filipino, ásio-súbdito dos Filipes?

Ou Agripino, vê-filho-não-te-constipes?

 

P’la nossa Rainha Santa

P’lo tão só que a procura

Fartura de pobre é tanta

É tanta, é uma loucura.

 

Cozo-te um azulejo

Debruado a azul

Nada procuro ou ensejo

Mas lavo & sou taful.

 

Desperto sozinho em quarto mutilado de gente.

Há conversas, perdão, conservas no armário.

Não se morre de fome indigente,

mas tenho a vida ao contrário.

 

Confusão onomástica: meus Irmãos de meus Pais.

Transmiti-a ainda a uma Filha, essa minha Primeira.

H. de todos os Daniéis (acentuai os éis).

Isto não me parece fortuita brincadeira.  

 


 

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Canzoada Assaltante