© DA.
71
Ao cabo de
sete noites de vigília – em ronda, H. enfrenta três-dias-três de
descanso-folga. Consulta médica às 15h20m da sexta-feira: análises boas,
colesterol diminuído. Tempo abafadiço, rosnador de trovoada, indistinta
solaridade, certo vento crepuscular fazendo revoar o lixo pelo chão.
Invenções
& convenções?
Também H. as
recorre.
Campos de
limpas verdes solidões.
O ser-em-si
não renasce, só morre.
18h11m, há
que seguir acordado.
O verso-justo
pode dar-de-si no instante.
Vem ao
bebedouro o assalariado.
Já acende
montra o restaurante.
Falam de
comida(s) bebedores-balconistas.
Isto com
piment’assado, aquilo com limão.
As antigas
cristãs anti-moirama conquistas.
E a pressa das vendas-call-center-sofreguidão.
Vou mais para
ir-me-a-lado-algum.
Sou H.:
escolhi este nome contemporâneo & nenhum.
Sei que como
Camões há mais nada a cotejo.
Não perfilho
volúpia, não m’inquieta desejo.
O Autor-Actor
dá de-si-mesmo produção
falando ex-machina
de atrás do cortinado.
Isto é para
miúdos de pessoal-&-escolar condição,
um
instante-em-palco, como se televisionado.
Não vou
remediar por escrito o que é proscrito.
Estou em hora
de praia, dizem-me do Tó Conceição.
A mudez é
miséria – e só dá grito
em eco de
surdez & aflição.
Atura tu os
gestos repetidos
d’assegurança
mater-amorosa.
Que dizes
hoje, Delfim, sentindo
que mui havia
gente maravilhosa?
Visito o meu
Irmão-Tão-Doente.
Escapatória-Não-Tem-D’Onde-Chegou.
Alinho nas
visitas como treva-de-gente.
É-Meu-Irmão-co-Neto-de-Nosso-Avô.
72
Menos
palavras me têm acorrido por estes dias sem clamor. Vogo & navego bonanças
talvez ilusórias. Não padeço porém de susto. A tudo relativizo. Não me julgo
absoluto. Nada disso é preciso.
No prédio
erguido a poente, moram:
Crismina Escariz Barrinha Aveleda, 45 anos, solteira, enfermeira de pediatria, sócia do Clube Filatélico;
Britânia
Micelho Guizo Escarpim, 82 anos, viúva, aposentada da Companhia Nacional de
Navegação, utente do Centro de Dia Paroquial de São Bernardino;
Altivo Idalino
Seiça Verdeal, 34 anos, activista do Orgulho-Gay (Secção de Alcarraques), beneficiário
de herança avoenga;
Crispim
Verona Antofagasta Regata, 58 anos, canalizador-electricista da Câmara
Municipal, divorciado de Rosa Amélia Ferrabrás Baunilha, sem filhos.
Eu não o resid(u)o
em tal prédio. O meu corrente tugúrio é um quarto que me cede certa caridade
institucional com sede ali ao Pátio da Inquisição.
Meia-dúzia de
livros nesse meu dormitório.
Acesso a
cozinha + casa-de-banho & vomitório.
Sonos fármaco-quimicamente
subsidiados.
Nenhuma perspectiva
de ver meus escritos publicados.
No roupeiro, prateleira
com víveres enlatados & condimentos.
Também: massas,
arroz, rebuçados, medicamentos.
Sem fotografias
nas paredes, duas janelas, par de chinelos.
Sonhos às
vezes convulsos, mefistofélicos, amarelos.
Conversadorias
& falações alheias surdem derredor.
(Delfim telefona
a Hermínio, é momento do melhor.)
A tarde
beneficia de zéfira ligeira aragem.
É suave tal
favónio, alimenta a coragem.
Sim, é correcta
a notação de tom puro & duro:
“Hermínio
necessita de esquecer o futuro.”
D. & H. relembram
o extinto José António Conceição.
Amargor &
tristura embrulham a relembração.
Jovem mãe de
vestido amarelo, seu petiz de encarnado.
Deliciada, a
criança lambe a gosto o gelado.
De trigal
cabeleira ouro-natural é o materno ser.
E loirito seu ’nino é, por natura & dever.
Olivério Norton
Ramires Plantageneta.
Chega ao
Café, manda vir abatanado.
Coxeia de
esguelha, de cernelha perneta.
Muitos anos
engenheiro, está ora reformado.
M., minha boníssima
Amiga, está doente.
Telefonei-lhe,
quis saber, sei-a enfebrecida.
Sim, eu sei
que tal sucede a muita gente.
Mas M. é M.,
amiga-de-para-toda-a-vida.
O contrato de
trabalho prescreve a 19 de Setembro superveniente.
Hermínio finge-se
descuidado, que não é coisa premente.
Mas é, pois
que se lhe seguem angústia & incerteza.
E pobreza
pela certa, dessa de nem pão nem mesa.
Na cama que
te (des)fizeste, nessa tu te deitas.
Mui torto
escreveste por linhas não-direitas.
Também
aviaste má gente, queimado maus dias.
Talvez a
velhice te remunere com rijas agonias.
Enquanto não,
a Cidade abre-se em rosa solar.
O mais é ir
andarilhando de penates ao ar.
Já nenhuma
mulher te amanhece desejos.
Já mulher
alguma te acalenta beijos.
H. deveria talvez
frequentar algum baile-das-velhas.
Amigar-se com
uma de firmes rendimentos.
Ir merendar
com ela sardinhas & pimentos.
E fazer-lhe à
carneiro o que se faz às ovelhas.
Delfim tem
sua Mãe doente, ida sem retorno.
Às vezes, a
vida nem chavelho nem corno.
H. é órfão de
ambos seus Pais.
Suspira tremendos,
cavernosíssimos ais.
Poucos livros
no Quarto-Casa, poucos de mais.
Nem
arca-de-papéis-à-la-Fernando-Pessoa.
Importa nada: pois que sufrágio irrepetível,
a existência
de H. prima por irredimível.
Onde cear
hoje? E o quê? E sempre sem quem?
Ora, pois em
qualquer lado, não em casa da Mãe.
Além, o
pedinte dos semáforos, sósia do Cesariny.
Vejo-o às sete da manhã dedicando seu Martini.
Ainda curto o
meu Régio, o meu Carlos de Oliveira.
Ainda frúo o Camões
& o d’A Castro, o Ferreira.
Falei, com
Íñigo, de Cortázar, sempre tão boa leitura.
Escoro a
minha vida de infinita literatura.
Recordo certa
moça de ali da Parede ou Cascais.
Falámo-nos muito,
era mui interessante.
Nunca mais a
vi ou a tive perante.
O tempo se
foi – e não volta mais.
Recordo um
rapaz, poeta de/em Viseu.
Não escrevia
mal, mas faltava-lhe sal.
Era muito
doente, nem sei se já ou não morreu.
Ele era
Gonçalo Mendo Sá de Côrte-Real.
Também em
Viseu, visitei Luís Miguel Nava.
Dorme em
torrão de pedra, precoce extinto.
Fui muito à Rua
Direita ensopar-me de tinto.
Era então
amancebado com uma bárbara-escrava.
Já tudo lá
vai tanto para meu menor espanto!
Deixei tal
vivência por manuscadernos dispersos.
Talvez ’inda algo
valha meia-dúzia de versos.
Não sei. Sei
mui pouco. A ignorância é o meu esperanto.
Já não sou
rapazito. Gastou-se-me a infância.
Se algumas
coisas felizes? Sim, mortas à distância.
Meia-dúzia de
livros no Tugúrio-Quarto.
Sei que já
fui vindo, não sei quando parto.
Só não queria
volver-me velho medicamentoso,
senil, desmemoriado,
engelhado & leproso.
Apenas
não-ter & não-ser & nem-deve-nem-haver.
Docemente
flectido o verbo esquecer.
Uma frecha de
sol obliqua a nublação.
Rebrilha o
verde da colina em ascensão.
Passa um
casalito, ambos vão de calções.
Ambos empregados
com remunerações.
Trabalham
duas moças naquela mercearia.
Subassalariadas,
trabalham todo o dia.
Simpáticas
são, corteses, gentis.
Costumo lá ir
comprar(-lhes) o anis.
O tempo houve
em que fui músico pago.
Já ora não
toco, valha-me o carago!
Nem a bailes
vou caçar uma mulher.
É melhor
ser-a-sós do que com uma-qualquer.
Penso devagar
nos animais a que pertenci.
Cães, gatos,
aves, algumas mulheres até.
Expectoro
hoje lembranças de boa-fé.
Ai o meu Cão
Amarelo, que eu tão cedo perdi!
Revieram-me hoje
as palavras, por o que sou grato.
Serenei os
nervos, dou-me ao desbarato.
Tenho moedas
que cheguem, não me faltam cigarros.
O passe está
pago, ando nos autocarros.
Revisito quarta-feira
a José-meu-Irmão.
Não levo nem
trago comigo ilusão.
Milhentos passaritos
revoam os ares.
Seres como eu
sós assozinham os bares.
De licra
apertada, passam pernas feminis.
Pèzitos mui
breves em moles mocassins.
Trejeita-se
toda modos mulheris.
Toma assento
& cerveja com amendoins.
Juntou-me o
entardenoitecer a três amigos
do tempo da Escola-Primária
benfazeja.
Mirámos as
décadas, os verdores vividos.
Em brinde nos
celebrámos com cerveja.
Refrescou a
meteorologia. Homens laborais ao balcão.
Pouco falta
para ser oficialmente Verão.
Escrevo na
antecâmara do desconhecido.
Sou quem
serei acumulando o já-vivido.
Mui pouco sei
eu de meu senhor paterAvô.
Sei bem mais
de seu-dele-Filho-meu-Pai.
Ambos constam
activos do/no que sou.
E em ambas
minhas Filhas cada um vai.
De Vós não
divirjo em efemeridade.
Sucede-me ser
banalíssimo, descuidado de virtudes.
Gracejo minhas
tristezas, oro por Vossas saúdes.
Exerço a
minha quota societária da Cidade.
Julgo de 1888
a edição-princeps de Os Maias.
Nesse ano há
nascido Fernando António Nogueira Pessôa.
(Sim, com
circunflexo, assim era a escrita boa.)
Julgo ainda
que mal fica aos homens usarem saias.
Cruzo o meu
dia sem pólvoras-inventadas.
Não domino o
fogo, não invento a roda.
Nutro-me de
minuciosos pequenos-nadas.
Beatriz,
traz-me um irish temperado a soda.
Reconheço territórios
que a minha vida devastou.
Irmano-me a
d-existências que esquecem esquecer.
Venho eu por
elas enquanto vier.
Minhas Filhas,
meu Pai, minha Mãe, meu Avô.
Hermínio envelhece
sem dar de si grande luta.
Aperta-se-lhe
o cerco, as noites são-lhe irmãs.
Mas ainda o
jubilam as aves das manhãs.
Adormece &
não fala, não profere nem escuta.
Acorda pelas seis
horas tomado de incerteza.
Recorda brancuras
que não tinham vileza.
Lava devagar
a cara, julgando-a rosto.
Não tarda lhe
é Inverno em pleno Agosto.
A quem chamar
amor pela hora da sossega?
(E para quando
as Memórias de um Átomo pelo sr. João da Ega?)
Janto peixe
ou carne, arroz ou verduras?
Embarco em
poupanças ou desbarato loucuras?
Cem anos
volvidos sobre a princeps de Os Maias,
era 1988, assentei
infante praça em Mafra.
Vietnamizei
as fomes do Biafra
& saí
jubilado tipo tem-te-não-caias.
Hoje não
copularei com senhora disponível.
Arredei-me de
convívios pró-comércio-carnal.
Tenho amigos-de-copos
por companhia possível.
Dura a vida dois
dias; três o Carnaval.
Amacia-se-me o
protótipo das noites sozinhas.
(Sim, são
poucos os livros em o meu quarto.)
Nutro pardalitos,
melritos, pombinhas.
O meu pão-p’ra-aves
nunca é menos que farto.
Certa fluvialidade,
por assim dizer, do pensamento?
Sim, ela flúi
em versos marcando o passo.
Eu já estive
de luto mercê do bagaço.
E agora o
instante é de outro momento.
Palavras que
alguém nos diga em pura bondade ?
São elas mui raras
nestas Vida & Cidade!
Eu ceio a sós
a um balcão lavado.
A sós bem me
como quase desde nado.
Sem comentários:
Enviar um comentário