18/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 71 & 72

© DA.




71

 

Ao cabo de sete noites de vigília – em ronda, H. enfrenta três-dias-três de descanso-folga. Consulta médica às 15h20m da sexta-feira: análises boas, colesterol diminuído. Tempo abafadiço, rosnador de trovoada, indistinta solaridade, certo vento crepuscular fazendo revoar o lixo pelo chão.

 

Invenções & convenções?

Também H. as recorre.

Campos de limpas verdes solidões.

O ser-em-si não renasce, só morre.

 

18h11m, há que seguir acordado.

O verso-justo pode dar-de-si no instante.

Vem ao bebedouro o assalariado.

Já acende montra o restaurante.

 

Falam de comida(s) bebedores-balconistas.

Isto com piment’assado, aquilo com limão.

As antigas cristãs anti-moirama conquistas.

E a pressa das vendas-call-center-sofreguidão.

 

Vou mais para ir-me-a-lado-algum.

Sou H.: escolhi este nome contemporâneo & nenhum.

Sei que como Camões há mais nada a cotejo.

Não perfilho volúpia, não m’inquieta desejo.

 

O Autor-Actor dá de-si-mesmo produção

falando ex-machina de atrás do cortinado.

Isto é para miúdos de pessoal-&-escolar condição,

um instante-em-palco, como se televisionado.

 

Não vou remediar por escrito o que é proscrito.

Estou em hora de praia, dizem-me do Tó Conceição.

A mudez é miséria – e só dá grito

em eco de surdez & aflição.

 

Atura tu os gestos repetidos

d’assegurança mater-amorosa.

Que dizes hoje, Delfim, sentindo

que mui havia gente maravilhosa?

 

Visito o meu Irmão-Tão-Doente.

Escapatória-Não-Tem-D’Onde-Chegou.

Alinho nas visitas como treva-de-gente.

É-Meu-Irmão-co-Neto-de-Nosso-Avô.


 

72

 

Menos palavras me têm acorrido por estes dias sem clamor. Vogo & navego bonanças talvez ilusórias. Não padeço porém de susto. A tudo relativizo. Não me julgo absoluto. Nada disso é preciso.

 

No prédio erguido a poente, moram:

 

Crismina Escariz Barrinha Aveleda, 45 anos, solteira, enfermeira de pediatria, sócia do Clube Filatélico;

 

Britânia Micelho Guizo Escarpim, 82 anos, viúva, aposentada da Companhia Nacional de Navegação, utente do Centro de Dia Paroquial de São Bernardino;

 

Altivo Idalino Seiça Verdeal, 34 anos, activista do Orgulho-Gay (Secção de Alcarraques), beneficiário de herança avoenga;

 

Crispim Verona Antofagasta Regata, 58 anos, canalizador-electricista da Câmara Municipal, divorciado de Rosa Amélia Ferrabrás Baunilha, sem filhos.

 

Eu não o resid(u)o em tal prédio. O meu corrente tugúrio é um quarto que me cede certa caridade institucional com sede ali ao Pátio da Inquisição.

 

Meia-dúzia de livros nesse meu dormitório.

Acesso a cozinha + casa-de-banho & vomitório.

Sonos fármaco-quimicamente subsidiados.

Nenhuma perspectiva de ver meus escritos publicados.

 

No roupeiro, prateleira com víveres enlatados & condimentos.

Também: massas, arroz, rebuçados, medicamentos.

Sem fotografias nas paredes, duas janelas, par de chinelos.

Sonhos às vezes convulsos, mefistofélicos, amarelos.

 

Conversadorias & falações alheias surdem derredor.

(Delfim telefona a Hermínio, é momento do melhor.)

A tarde beneficia de zéfira ligeira aragem.

É suave tal favónio, alimenta a coragem.

 

Sim, é correcta a notação de tom puro & duro:

“Hermínio necessita de esquecer o futuro.”

D. & H. relembram o extinto José António Conceição.

Amargor & tristura embrulham a relembração.

 

Jovem mãe de vestido amarelo, seu petiz de encarnado.

Deliciada, a criança lambe a gosto o gelado.

De trigal cabeleira ouro-natural é o materno ser.

E loirito seu nino é, por natura & dever.

 

Olivério Norton Ramires Plantageneta.

Chega ao Café, manda vir abatanado.

Coxeia de esguelha, de cernelha perneta.

Muitos anos engenheiro, está ora reformado.

 

M., minha boníssima Amiga, está doente.

Telefonei-lhe, quis saber, sei-a enfebrecida.

Sim, eu sei que tal sucede a muita gente.

Mas M. é M., amiga-de-para-toda-a-vida.

 

O contrato de trabalho prescreve a 19 de Setembro superveniente.

Hermínio finge-se descuidado, que não é coisa premente.

Mas é, pois que se lhe seguem angústia & incerteza.

E pobreza pela certa, dessa de nem pão nem mesa.

 

Na cama que te (des)fizeste, nessa tu te deitas.

Mui torto escreveste por linhas não-direitas.

Também aviaste má gente, queimado maus dias.

Talvez a velhice te remunere com rijas agonias.

 

Enquanto não, a Cidade abre-se em rosa solar.

O mais é ir andarilhando de penates ao ar.

Já nenhuma mulher te amanhece desejos.

Já mulher alguma te acalenta beijos.

 

H. deveria talvez frequentar algum baile-das-velhas.

Amigar-se com uma de firmes rendimentos.

Ir merendar com ela sardinhas & pimentos.

E fazer-lhe à carneiro o que se faz às ovelhas.

 

Delfim tem sua Mãe doente, ida sem retorno.

Às vezes, a vida nem chavelho nem corno.

H. é órfão de ambos seus Pais.

Suspira tremendos, cavernosíssimos ais.

 

Poucos livros no Quarto-Casa, poucos de mais.

Nem arca-de-papéis-à-la-Fernando-Pessoa.

Importa nada: pois que sufrágio irrepetível,

a existência de H. prima por irredimível.

 

Onde cear hoje? E o quê? E sempre sem quem?

Ora, pois em qualquer lado, não em casa da Mãe.

Além, o pedinte dos semáforos, sósia do Cesariny.

Vejo-o às sete da manhã dedicando seu Martini.

                                                              

Ainda curto o meu Régio, o meu Carlos de Oliveira.

Ainda frúo o Camões & o d’A Castro, o Ferreira.

Falei, com Íñigo, de Cortázar, sempre tão boa leitura.

Escoro a minha vida de infinita literatura.

 

Recordo certa moça de ali da Parede ou Cascais.

Falámo-nos muito, era mui interessante.

Nunca mais a vi ou a tive perante.

O tempo se foi – e não volta mais.

 

Recordo um rapaz, poeta de/em Viseu.

Não escrevia mal, mas faltava-lhe sal.

Era muito doente, nem sei se já ou não morreu.

Ele era Gonçalo Mendo Sá de Côrte-Real.

 

Também em Viseu, visitei Luís Miguel Nava.

Dorme em torrão de pedra, precoce extinto.

Fui muito à Rua Direita ensopar-me de tinto.

Era então amancebado com uma bárbara-escrava.

 

Já tudo lá vai tanto para meu menor espanto!

Deixei tal vivência por manuscadernos dispersos.

Talvez ’inda algo valha meia-dúzia de versos.

Não sei. Sei mui pouco. A ignorância é o meu esperanto.

 

Já não sou rapazito. Gastou-se-me a infância.

Se algumas coisas felizes? Sim, mortas à distância.

Meia-dúzia de livros no Tugúrio-Quarto.

Sei que já fui vindo, não sei quando parto.

 

Só não queria volver-me velho medicamentoso,

senil, desmemoriado, engelhado & leproso.

Apenas não-ter & não-ser & nem-deve-nem-haver.

Docemente flectido o verbo esquecer.

 

Uma frecha de sol obliqua a nublação.

Rebrilha o verde da colina em ascensão.

Passa um casalito, ambos vão de calções.

Ambos empregados com remunerações.

 

Trabalham duas moças naquela mercearia.

Subassalariadas, trabalham todo o dia.

Simpáticas são, corteses, gentis.

Costumo lá ir comprar(-lhes) o anis.

 

O tempo houve em que fui músico pago.

Já ora não toco, valha-me o carago!

Nem a bailes vou caçar uma mulher.

É melhor ser-a-sós do que com uma-qualquer.

 

Penso devagar nos animais a que pertenci.

Cães, gatos, aves, algumas mulheres até.

Expectoro hoje lembranças de boa-fé.

Ai o meu Cão Amarelo, que eu tão cedo perdi!

 

Revieram-me hoje as palavras, por o que sou grato.

Serenei os nervos, dou-me ao desbarato.

Tenho moedas que cheguem, não me faltam cigarros.

O passe está pago, ando nos autocarros.

 

Revisito quarta-feira a José-meu-Irmão.

Não levo nem trago comigo ilusão.

Milhentos passaritos revoam os ares.

Seres como eu sós assozinham os bares.

 

De licra apertada, passam pernas feminis.

Pèzitos mui breves em moles mocassins.

Trejeita-se toda modos mulheris.

Toma assento & cerveja com amendoins.

 

Juntou-me o entardenoitecer a três amigos

do tempo da Escola-Primária benfazeja.

Mirámos as décadas, os verdores vividos.

Em brinde nos celebrámos com cerveja.

 

Refrescou a meteorologia. Homens laborais ao balcão.

Pouco falta para ser oficialmente Verão.

Escrevo na antecâmara do desconhecido.

Sou quem serei acumulando o já-vivido.

 

Mui pouco sei eu de meu senhor paterAvô.

Sei bem mais de seu-dele-Filho-meu-Pai.

Ambos constam activos do/no que sou.

E em ambas minhas Filhas cada um vai.

 

De Vós não divirjo em efemeridade.

Sucede-me ser banalíssimo, descuidado de virtudes.

Gracejo minhas tristezas, oro por Vossas saúdes.

Exerço a minha quota societária da Cidade.

 

Julgo de 1888 a edição-princeps de Os Maias.

Nesse ano há nascido Fernando António Nogueira Pessôa.

(Sim, com circunflexo, assim era a escrita boa.)

Julgo ainda que mal fica aos homens usarem saias.

 

Cruzo o meu dia sem pólvoras-inventadas.

Não domino o fogo, não invento a roda.

Nutro-me de minuciosos pequenos-nadas.

Beatriz, traz-me um irish temperado a soda.

 

Reconheço territórios que a minha vida devastou.

Irmano-me a d-existências que esquecem esquecer.

Venho eu por elas enquanto vier.

Minhas Filhas, meu Pai, minha Mãe, meu Avô.

 

Hermínio envelhece sem dar de si grande luta.

Aperta-se-lhe o cerco, as noites são-lhe irmãs.

Mas ainda o jubilam as aves das manhãs.

Adormece & não fala, não profere nem escuta.

 

Acorda pelas seis horas tomado de incerteza.

Recorda brancuras que não tinham vileza.

Lava devagar a cara, julgando-a rosto.

Não tarda lhe é Inverno em pleno Agosto.

 

A quem chamar amor pela hora da sossega?

(E para quando as Memórias de um Átomo pelo sr. João da Ega?)

Janto peixe ou carne, arroz ou verduras?

Embarco em poupanças ou desbarato loucuras?

 

Cem anos volvidos sobre a princeps de Os Maias,

era 1988, assentei infante praça em Mafra.

Vietnamizei as fomes do Biafra

& saí jubilado tipo tem-te-não-caias.

 

Hoje não copularei com senhora disponível.

Arredei-me de convívios pró-comércio-carnal.

Tenho amigos-de-copos por companhia possível.

Dura a vida dois dias; três o Carnaval.

 

Amacia-se-me o protótipo das noites sozinhas.

(Sim, são poucos os livros em o meu quarto.)

Nutro pardalitos, melritos, pombinhas.

O meu pão-p’ra-aves nunca é menos que farto.

 

Certa fluvialidade, por assim dizer, do pensamento?

Sim, ela flúi em versos marcando o passo.

Eu já estive de luto mercê do bagaço.

E agora o instante é de outro momento.

 

Palavras que alguém nos diga em pura bondade ?

São elas mui raras nestas Vida & Cidade!

Eu ceio a sós a um balcão lavado.

A sós bem me como quase desde nado.

 


 

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Canzoada Assaltante