© DA.
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Certa
necessidade de Hermínio é muito fácil de pôr & deixar por escrito:
Necessidade-de-Esquecer-o-Futuro.
Desde
20 de Maio, é vigilante contratado de uma instituição-particular-de-solidariedade-social.
Ordenado-mínimo-nacional. Por turnos de oito horas: ou oito-dezasseis, ou
dezasseis-meia-noite, ou zero-oito-horas. Folgas alternadas. Um fim-de-semana
completo por mês. Alimentação, seguro laboral, assistência clínica, descontos
em ordem para SS & IRS.
Tem
feito horas nocturnas. Os carenciados do asilo dormem a três por quarto. Ajuda nas
refeições & na medicação. Fá-los cumprir os horários permissivos & os
intransigentes. Dá copos de água, saquetas de açúcar. De seu (cigarros,
cêntimos), nada pode dar. Nem emprestar.
É
como na vida – futura ou não.
Predomina
a população de género masculino. As mulheres, dois tabuleiros de xadrez apenas.
São alimentados, estão medicados. Não têm para onde ir – têm apenas onde ficar.
Por enquanto, pensa Hermínio – por encanto-enquanto.
Das
zero às oito horas. Em ronda pelo corredor medular da cas’asilo. Celas à
esquerda, cubículos sanitário-despenseiros à direita (no sentido este-oeste). Adjacente
ao velho edifício religioso (a instituição é cristã-católica), horta-jardim:
laranjeiras, melros, gatos sem amo, pontas de cigarro esmifradas por beiços
pobres. Crucifixo a sul, senhora-de-fátima a poente. Louça muito usada. Higiene
inimputável, asseio compulsivo, comida suficiente,
rendimento-social-de-inserção. Deserdados. Das zero às, afinal, zero também.
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Um
pouco antes das oito da tarde. Para jantar, ver a final europeia em
canal-aberto, ter tempo de chegar antes da hora-oficial ao trabalho, cumprir o turno,
sair às outras oito, as da manhã. Frango-de-churrasco-arroz-batata-salada. Dar o
número-de-contribuinte, agora sim, finalmente. Passar pelo multibanco,
transferir dinheiro para a renda do quarto (em atraso, hoje mesmo re-solicitada).
Fazer estas coisas sem ser-esta-coisa-só. Alimentar aves livres. (Tenho
constante munição de pão-arroz no bornal. Digo: Hermínio tem constante munição etc.)
Tudo
isto parecendo-se tanto (mas tão!) mais com estar do que com ser.
Ter aprendido uma Língua, regrar-se por uma Gramática, cheirar na alva húmida
as vaporosas rosas – para quê?; para nada; porquê?; por que não, já agora?
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