15/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 59 a 63

© Edward Weston




59

 

Isto, ou há gente a mais no mundo – ou mundo a menos. O planeta está tipo-espécie-à-guisa-de-Cidade-do-México-Global. Inundações além, secas prolongadas acolém. Quarenta graus em Helsínquia, tiritando-se de briol em El Alamein. Muita gente por decímetro-quadrado, deserto interior em cada indivíduo condenado à autoconsciência.

 

60

 

Delfim, boníssimo Delfim:

 

Quanto percepciono, e bem mais do que nos meus antigamentes, percepciono-o em reiteração. Os seres estropiados, sabes? Os estropiados seres de Coimbra que pelo entardenoitecer, em andaina, se colmeiam em favo à porta dos institutos de caridade (este último substantivo, uso-o eu – pois que solidariedade é mais politicamente-correcto). Zumbem em surdina os traficantes, os passados, as prostitutas, os cegos de trevas duplicadas, os romenos (filhos todos do Ceausescu), os todos, enfim, que vieram para esta Hollywo’odida-Torre-Cabra. A minha recente rotina laboral torna-mos (ainda) mais visíveis, mais evidentes, mais preclaros – mais me-próximos, vá. Junho não ajuda. Hoje, a luz foi de cartão-de-caixa-de-sapatos. Às sete da manhã, morrinhava molhatolamente. Depois, encalorou-se a coisa. Desandamos nisto. Eu sei bem que bem percepcionas quanto te digo desta Coimbra que, por 1-23 (ou seja: um ano e vinte-&-três-dias), é mais tua do que minha.

Ou então:

Nem só de veias empoeiradas.

Também a praga turística, loira ou china.

Subevenires de cortiça + galo-de-Barcelos.

E o desemprego-índio: em-flecha.

Bibelótes da modernidade, hambuporcoarias.

Alface tisnada, vinho-de-cozinha-ao-pacote.

Os que dormem na rua.

Os que, tendo casa, sofrem de insónia.

Absinto-logo-(d)existo.

Compenso-logo-(r)existo.


 

61

 

A trepidante aventura hodierna de Hermínio é a seguinte: dar amostra de sangue para análise. A doutora recebê-lo-á ao dia 17 próximo. Já H. se encontra na sala-de-espera dos analisandos. Não gosta que o piquem e/ou sangrem, pois não – mas tem de ser, a-bem-da-nação. O espaço (luminoso & ventilado, nada que se lhe aponte de negativo) está bem fornecido de esperantes. Um de tais bípedes é um ser do género fêmeo cuja pele, de retinta cor-de-azeitona, reverbera à contraluz. Outro deles, fêmeo também, é de fúlgida cor-de-claras-batidas-em-castelo. Os restantes 23 primam pela morenidão adamada, meridional, vim há dois dias da Figueira & ainda me acho iodado. Alguns velhos (& H. entre os quais, sim, já). Alguns aí por seus/deles quarentas. Criança nenhuma. O ar-condicionado funciona. O chão está limpo. Respeita-se o silêncio. Não há, felizmente, televisor aceso ou por acender. Um pátio coberto em estufa alberga flores, vê-se pelas vidraças quadrangulares. Toda a gente mascarada. Como esta praga veio da China, talvez seja mais assisado escrever: Maoscarada. Hermínio faz por não ceder ao tédio. Tem pavor ao tédio – bem mais do que à morte mesma. Lê o seu Fuentes/Nonato. Tem duas saquetas de açúcar para chupar depois de o vampirizarem. Trepidante açúcar, desmedid’aventura.

 

62

 

O grande calor acossa-nos, transumantes respirando a custo.

À sombra, se alguma brisa, viver é ainda possível: e justo.

Junho, que Teixeira-Gomes inventariou, é juncofumegante.

Vibram de sede as rosas, que as não visita chuva aquém-adiante.

 

Esperam-me turnos nocturnos apenas, a-deus-graças.

Zombiear-me-ei à claridade cegante, aposto.

Andamos de máscara, as tipo chino-mordaças.

Ganharei pela noite o pão do meu rosto.

 

Quinta-feira, hei visto mundo, dei veia à enfermeira.

Depois, autocarreei-me, fui ter com o meu Gato.

São quase as dezanove, está calor, já não chove. E em retrato,

eu vi lírios brancos, brancos qual cal em fogueira.

 

Remo contra mais marés do que marinheiros.

Suo minhas estopinhas em prol das sopinhas.

Só custo uma libra, dois xelins, três dinheiros.

E comovo-me, às vezes, pensando nas Filhinhas.

 

Pessoas – a que assisto como a espectáculos sem gala.

Animais – deles a militante inocência, a rigor sem pecado.

O burro de em frente & a vaca de ao lado.

Acedi a gente acedendo à fala.

 

Já se vai torresmando o Sol a seu poente.

As paragens-bus? Apinhadas de gente.

Amanhã, por feriado, é serôdio domingo.

Conto almoçar o meu pão, de vinho um pingo.

 

O grande calor

Etc.

 

63

 

Acalma-se entretanto a hora, não dói ou macera tanto estar vivo em perene cont(r)a-corrente. Cervejófilos crepusculam a sua folga – muitos trabalharam deveras través a canicular-mordente jornada. Tremoços (= “camarões-do-Eusébio”), amendoins. Crianças coca-coláceas. Um gato ao longe farejando moitas que os ratos desabitaram a tempo. Delfim, magno Delfim: antes que de vez se nos imponha a senectude – ou de repente a trombose-fulminante –, será talvez de melhor grado o usufruto de horas-destas-assim-tal-esta. O mini-super fecha daqui a pouco, recolherão cansadas a casa suas obreiras a salário-mínimo. Nenhumas (lhes/nos) são, as horas, extraordinárias. Assim é para quase todos.

Acalma-se entretanto

Etc.



 

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Canzoada Assaltante