67
Sem qualquer
referência, intransigente, a torreira solar calcina as ruas, atirando ao chão a
toalha preta da minha sombra – a minha Sombra, mais do que eu viva.
A Língua Inglesa
distingue tempo cronológico (Time) de tempo climático (Weather).
A Portuguesa tem de recorrer à dicotomia maiúscula/minúscula (T/t) para
diferençar relógio/calendário de calor/chuva/etc.
Por mim,
sinto-me iracundo: a fornalha dominical não abranda. Sinto-me adoentado,
quebrantado, roberto-de-cordas-esgarçadas: tive de efervescer em água uma
pastilha de ácido-acetilsalicílico, vulgo aspirina.
68
Um arremedo
de febre vem desde ontem tomando-me conta do metabolismo. Compensei as friúras
febricitantes da noite (de trabalho, em vigília, das zero às oito) dormindo
pedaço da finimanhã de hoje. Terminei a leitura do Nonato do senhor
Carlos Fuentes (1928-2012). Por bênção, o entardenoitecer é de temperatura moderada.
Reentrarei em função laboral à meia-noite.
Desfaço as
horas crepusculares fazendo o possível por não pensar mais-no-mesmo. São as
19h28m. Não hei de momento especial ou peculiar alternativa. Talvez jante fora,
talvez me leve a passear pelo comércio melancólico das refeições nocturnas.
69
Desde domingo,
alquebrado de gripose, o Hermínio.
Certa indisposição
física volvida metafísica.
Anos breves
contrastados (& contristados) a horas longas.
E sarro tússico
de ladrar pneumocavernas.
Individual ou
colectivo, é de sua natura incerto o porvir.
Ao cabo de
uma noite-toda de trabalho, Hermínio pousa.
Veio a pé até
aqui, do Pátio da Inquisição ao Monte Formoso.
E pôs-se
lendo Shakespeare sem pressa nem remédio.
Ontem,
trovejou fortemente, abafadiços ares respirou.
Alternâncias de
calor-arrepio electrificaram-lhe o corpo.
Foi a ver seu
Irmão, que em diverso neuroplaneta reside.
E depois
jantou sozinho em churrasqueira não-próspera.
Falhar a vida
não é alternativa a este livro, diz-se Hermínio.
Hermínio dá
conta do recado, por enquanto-encanto dá.
Não foi às
colónias matar turras, estudou belas-letras.
E hoje é um
pré-sexagenário sem cama-fêmea.
Calcorrei’a’ndarilha
sua Cidade natalício-terminal.
De irresoluto
luto padece há de mais décadas.
Alegram-no os
volantes bandos a que dá pão.
E as pombas
conhecem-no, saúdam-lhe os versos.
Paracetamol
& ibuprofeno com vinho-tinto ao natural.
Meia-dose de
frango com batata-salada-arroz.
Rapazes deserdados
em langor de guitarras.
E Shakespeare
com cerveja na manhã grisalha.
Vê passar os
expressos-rodoviários como antigamente.
Daqui porém não
sai já, este é quanto Portugal lhe resta.
Nenhuma fêmea
lhe reclama os fiambres, nem uma.
E ele sorri
por antecipação à morte-macaca.
Mui rara é ocasião
de ver-falar-com-gente-humana.
Acontece pelo
aniversário-régio, que isso não mais.
De branca
chicha fornida, passa a carnuda Maria Alice.
E isto não lê
ela, por não ser de ler loucuras.
Entram em os
hermínios-versos condimentos diversos.
O mais é ir
vendo (mesmo que não olhando).
Já o não demovem
sentimentos perversos.
Vai a febre
passando, quizás hasta cuando.
70
Devidamente a
sós, está velho Hermínio
Jantando em
churrasqueira desertada
O saldo
digestivo, pequeno-nada,
Consola a luz
do dia em declínio.
É uma solidão
sem mores mistérios
Às vezes,
paciente recompensa,
Aqueles temas
que se iludem sérios
Mas que o não
são, não tão quão tal se pensa.
Vinde jantar
com ele neste livro
Vinde não-escutá-lo
no que pensa
Sêde bem-vindos
a ele estar vivo
Às vez’ a paciência
recompensa.
(Sim, vim
jantar de novo em solidão
Champanhe me não
espera, nem família
Tenho bocejado
muito ao serão
São poucos os
meus trastes de mobília.)
Em vésperas de
folga, rejubila
Hermínio lab(o)rador
de horas
Enxutas que
de si mesmas em fila
Lhe produzem
d’anti-trevas as auroras.
Contemporâneo
de sua mesma mesmidão
Hermínio pasta
sozinho em perfeita solidão
Diz-se ser
Corpo-de-Deus, este tal dia-feriado
Mas trabalha à meia-noite, formiga-não-canta-o-fado.
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