17/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 67 a 70




67

 

Sem qualquer referência, intransigente, a torreira solar calcina as ruas, atirando ao chão a toalha preta da minha sombra – a minha Sombra, mais do que eu viva.

 

A Língua Inglesa distingue tempo cronológico (Time) de tempo climático (Weather). A Portuguesa tem de recorrer à dicotomia maiúscula/minúscula (T/t) para diferençar relógio/calendário de calor/chuva/etc.

 

Por mim, sinto-me iracundo: a fornalha dominical não abranda. Sinto-me adoentado, quebrantado, roberto-de-cordas-esgarçadas: tive de efervescer em água uma pastilha de ácido-acetilsalicílico, vulgo aspirina.


 

68

 

Um arremedo de febre vem desde ontem tomando-me conta do metabolismo. Compensei as friúras febricitantes da noite (de trabalho, em vigília, das zero às oito) dormindo pedaço da finimanhã de hoje. Terminei a leitura do Nonato do senhor Carlos Fuentes (1928-2012). Por bênção, o entardenoitecer é de temperatura moderada. Reentrarei em função laboral à meia-noite.

Desfaço as horas crepusculares fazendo o possível por não pensar mais-no-mesmo. São as 19h28m. Não hei de momento especial ou peculiar alternativa. Talvez jante fora, talvez me leve a passear pelo comércio melancólico das refeições nocturnas.


 

69

 

Desde domingo, alquebrado de gripose, o Hermínio.

Certa indisposição física volvida metafísica.

Anos breves contrastados (& contristados) a horas longas.

E sarro tússico de ladrar pneumocavernas.

 

Individual ou colectivo, é de sua natura incerto o porvir.

Ao cabo de uma noite-toda de trabalho, Hermínio pousa.

Veio a pé até aqui, do Pátio da Inquisição ao Monte Formoso.

E pôs-se lendo Shakespeare sem pressa nem remédio.

 

Ontem, trovejou fortemente, abafadiços ares respirou.

Alternâncias de calor-arrepio electrificaram-lhe o corpo.

Foi a ver seu Irmão, que em diverso neuroplaneta reside.

E depois jantou sozinho em churrasqueira não-próspera.

 

Falhar a vida não é alternativa a este livro, diz-se Hermínio.

Hermínio dá conta do recado, por enquanto-encanto dá.

Não foi às colónias matar turras, estudou belas-letras.

E hoje é um pré-sexagenário sem cama-fêmea.

 

Calcorrei’a’ndarilha sua Cidade natalício-terminal.

De irresoluto luto padece há de mais décadas.

Alegram-no os volantes bandos a que dá pão.

E as pombas conhecem-no, saúdam-lhe os versos.

 

Paracetamol & ibuprofeno com vinho-tinto ao natural.

Meia-dose de frango com batata-salada-arroz.

Rapazes deserdados em langor de guitarras.

E Shakespeare com cerveja na manhã grisalha.

 

Vê passar os expressos-rodoviários como antigamente.

Daqui porém não sai já, este é quanto Portugal lhe resta.

Nenhuma fêmea lhe reclama os fiambres, nem uma.

E ele sorri por antecipação à morte-macaca.

 

Mui rara é ocasião de ver-falar-com-gente-humana.

Acontece pelo aniversário-régio, que isso não mais.

De branca chicha fornida, passa a carnuda Maria Alice.

E isto não lê ela, por não ser de ler loucuras.

 

Entram em os hermínios-versos condimentos diversos.

O mais é ir vendo (mesmo que não olhando).

Já o não demovem sentimentos perversos.

Vai a febre passando, quizás hasta cuando.


 

70

 

Devidamente a sós, está velho Hermínio

Jantando em churrasqueira desertada

O saldo digestivo, pequeno-nada,

Consola a luz do dia em declínio.

 

É uma solidão sem mores mistérios

Às vezes, paciente recompensa,

Aqueles temas que se iludem sérios

Mas que o não são, não tão quão tal se pensa.

 

Vinde jantar com ele neste livro

Vinde não-escutá-lo no que pensa

Sêde bem-vindos a ele estar vivo

Às vez’ a paciência recompensa.

 

(Sim, vim jantar de novo em solidão

Champanhe me não espera, nem família

Tenho bocejado muito ao serão

São poucos os meus trastes de mobília.)

 

Em vésperas de folga, rejubila

Hermínio lab(o)rador de horas

Enxutas que de si mesmas em fila

Lhe produzem d’anti-trevas as auroras.

 

Contemporâneo de sua mesma mesmidão

Hermínio pasta sozinho em perfeita solidão

Diz-se ser Corpo-de-Deus, este tal dia-feriado

Mas trabalha à meia-noite, formiga-não-canta-o-fado.




 


 

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Canzoada Assaltante