16/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 64 A 66


 


64

 

Não sou dos chamam “ténis” às sapatilhas.

Nem “invisual” ao cego.

Nem “portador-de-deficiência” àquele que, coxeando, vai para o maneta.

Nem “acessibilidades” às rodovias.

Nem “seniores” aos velhorros.

Diversa linguagem aprumo & esfumo.

Nem al tenho feito na vida, a irrisória vida minha.

Um pedaço de céu violeta? Alegria certa.

Pego, mais logo, à meia-noite. Despego às oito da matina.

Depois, não sei – o Sábado pela frente, a aventura maravilhosa-ó-Rosa.

Antigamente, chamavam “da Raça” ao 10-de-Junho.

“Da Traça” mais bem estaria lhe chamassem.

Sou, como alguns mais, uma espécie de self-madman.

Assisto à existência oblíqua das aves livres.

Um pouco de dinheiro basta-me a suportar o dia, cada dia.

Sou feliz quando a noite me prostra sem sonhos.

Estive ontem de folga, li muito, aproveitei a luz.

Digo: aproveitei a violeta, boníssimo Delfim.

Escrevo esta prosódia versicular por querer, mandar & poder.

Já hoje alimentei animais soltos de amarras.

A noite dos séculos esquecer-me-á sem pensar sequer uma vez.

A paz jubila esta esplanada no dia-feriado-racial-tracial.

Espontâneo zéfiro vem de quando em vez suspirar-me.

Sinto-me tipo enorme inerme. Bocejo. Coço-me.

Conduzirei, no mês próximo, a carrinha do trabalho? Não.

Lerei de melhor modo, verei mais longe com maior nitidez? Duvido.

Ser pobre não é o que por aí rosnam, é outra coisa.

Uiva pela avenida a ambulância rumo ao hospital universitário.

É um grito vermelho a azul-gás, aflige & descoroçoa a uma pessoa.

Penso no meu Pai, na luz (em) que subi com ele.

Em que subi luminosamente com ele aos moinhos de Lorvão.

No mesmo ano em que ele morreu, H. esteve internado no manicómio desse Lorvão mesmo.

Era então vivo ainda o doutor Américo Caseiro.

(1994?: um dos meus anos de self-madman.

Já lá vai, senhor Pai.)

Faz não tarda vinte anos, vivi na lisbonense Alameda.

Foi no ano seguinte ao da extinção do senhor meu Pai.

Foi quando li o Mann d’A Montanha Mágica.

Foi quando li aquilo do H.H. com-as-mãos-na-cabeça ou cois’assim.

Já então havia muito que se me impunha a beleza dos animais.

Sobrevivi a essa década derradeiro-secular – para isto-hoje.

E não chamo “pénis” à tatapil(h)a.


 

65

 

Fui no Dia-da-Raça a ver o Irmão,

que em Lar de arejada serra (se) termina.

Açúcar amargoso determina

o sabor de cada revisitação.

 

Pertenço a um céu todo lápis-lazúli.

Olho de baixo a pátria que me coube.

Não mais rumarei a Norte ou Sul – e

morrendo esquecerei o que já soube.

 

Viver é poupanças irmos perdendo.

(Quem tem filho doente, nada poupa.)

Faço por limpo andar de rosto & roupa.

Pouco elogio & a ninguém ofendo.


 

66

 

Esta Cidade vive ainda do trágico amor de Pedro/Inez.

Vive ainda da bondade imarcescível de Isabel de Aragão & Coimbra.

Mas desconhece Armando & Deosinda, meus vizinhos de-em-frente.

 

Armando vem adoecendo sem retorno, mal que por bem não vem.

Deosinda segue trat’am’ando-o em silente resignação.

E os dois vêm abatanar-se ao V.-d.-Mondego à minha vista.

 

Pedro-o-Cru/Inez-de-Castro/Rainha-de-Diniz-Isabel-em-Rosa

& Arman’d’eosinda, que por estes versos ao anonimato escapam.

Tudo humana gente que a vida castiga até co(s)micamente.

 

Minto-me em serenidade, julgando-A, à Cidade, pertença minha.

Sim, minto-me: mas Coimbra me é pátria de pária.

Durmo no Quarto-Casa de meu paterAvô José A.

 

Até Setembro, hei trabalho a contrato legítimo, que assinei & cumpro.

Depois, pois não sei, nada sei de futuros ’inda não-pretéritos.

Penso reler certos livros, tornar-me desinfeliz q.b.

 

Nova vaga de caloraça vem sufocar os pedestres íncolas.

Por sorte, calha-me esta semana o turno das 00-08h.

Cerro os cortinados, tremo de calor nas trevas artificiais, falo-te.

 

Falava-te, porém, meu bom Delfim, de Pedro & Inez.

Dizia-te, todavia, meu magno Delfim, da Rainha Santa

e de Armando & Deosinda, história-de-amor ora paginada.

 

Armando, ruço-capilar, foi 45 anos raio-Xzador.

Deosinda, branca como os lírios de 1955, copeira do Hospital.

Amam-se em perda anunciada, Armando tosse sofregamente.

 

São o mais delicado par, são o mais mútuo-dedicado casal.

Encanecem a olho-nu, pois que desnudamente os miro.

E eu, Hermínio A., revisito a solidão terminal de meu Irmão (também) José A.

 

O meu Irmão José A. veio para ser nome-eco de nosso paterAvô.

Cumpriu ele, que eu não tanto, produtiva vida laboral.

Jaz sentado ora em remoto Lar pago caro à mensalidade.

 

A neurologia trata-o qual a cego-vidente.

O olhar dele vê em o meu rosto as minhas costas.

Está no planeta dele, é sideral, vai despertencendo-me.

 

Todos os dias espero que Pedro-o-Cru me telefone.

Me telefone dando-me de outiva a ida do José A.

Não o do meu Quarto-Casa, atenção, mas sim o meu Irmão.

 

Deosind’Armando, nos entrementes, vêm ao Café.

Miro-os em plena discrição, de que descrição faço:

bonito par, contas arrumadas, a filha em Inglaterra.

 

Vivem ainda enfim – como esta Cidade idem.

Pessoas olhando de lentes tipo cu-de-garrafa.

E putas contrariadas, chulos de má-estirpe os seus.

 

Tercetos inflijo à leitura possível do improvável Leitor.

Habito duas folhas lençóiladas, durmo em nudez & mudez.

(E aqui, Quim-Delfim, é como me vês & lês.)

 

Isabel, dizia-te. E Pedro. E Inez.

(Um dia destes, hei-de deixar em paz os mortos.)

Só que sou de Coimbra, pouco tempo me demorou Lisboa.

 

Armando talvez se arme desaparecido antes deste caderno.

Digo: antes de terminado este caderno H.e.B.D.

Não importa: dormirá, sozinha mas linda, Deosinda.

 

(H.e.B.D.: Hermínio em Busca Delfim.)

Tenho em luz pela frente o Sábado todo:

mas não sei que fazer das horas, não tenho mulher ao lado.


(Armando tem.)

 



Sem comentários:

Canzoada Assaltante