24/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 90 a 99

© Manuel Alvarez Bravo




90

 

O mendigo de barba-neve vem de calendário-menino-jesus.

Se o meu Pai vai à porta, ele recebe cinco escudos.

Se for a minha Mãe, cinquenta centavos.

A economia dos pobres move os oceanos.

 

Também de porta-em-porta, o homem dos livros.

Uns de dietética ético-poética, outros do marxismo.

O nazi-fascismo, os mortos & os vivos.

Mais o Man’el da Fonseca do neo-realismo.

 

Ante a minha lembrança afinal tão leal?

Tudo o que se mexa & remexa de umbilical.

E àqueles a quem isto diga nada?

Pois tudo mui bem, siga a desgarrada!

 

91

 

(Resto de pão com fiambre no bornal, sigo em frente.

Desparece-me que o dia seja de outro diferente.)


 

92

 

Era no tempo do Dino-Meira-em-cassette, não me saíra ainda o já-que-pote do totoloto, esse tempo em que existir equivalia à essência mesma do pessegueiro, sabes, olha,

 

Já não é tal tempo, agora é tudo óne-láine, passeio todavia ainda pelas ruínas do futuro, faço-me pertencer a um clã de homens que passeiam a própria sombra atrelados ao cão de que fizeram a própria vida, mas

 

Espero por um saco de mantimentos, outro de roupa lavada, todos os dias são bons para tomar banho, ventilar os interstícios, ter a máquina a pelo-menos-quarenta-por-cento, e quê, mais quê?,

 

Menos quem?


 

93

 

Imagem de rapaz sentado em penhasco face ao oceano.

Não penseis filmicamente; ele é só (& tão-só) em-imagem-verbal.

Tempestades & prados, rebanhos & coudelarias.

E em palavras os anos como em sílabas os dias.


 

94

 

A minha Amiga teve de ausentar-se, diz-se que não volta.

A palavra dela era limpa, evolava-se limão.

O melhor dos Amigos é o andarem à solta.

Cada um sabe de-si-a-sua-dimensão.


 

95

 

Faço por não confundir ambrosia com ambrósia.

Faço por não confundir gémeo com sósia.

 

Mui de al porém fundo & confundo.

(Pois assim desando neste & deste mundo.)


 

96

 

Apresento-te, meu bom D., este declive sem enigma.

Já não se trata de hemistíquio, enfisema ou auto-estima.

Fim de minha matina em ignorância de final.

O-programa-segue-dentro-de-momentos, como sempre & afinal.


 

97

 

Acontece-me muitas vezes pensar em António Nobre.

Em Amadeo também, também muito em Wenceslau.

A neve já não é, não há nem recobre

a moita da serra em tempo dito mau.

 

Muito em Mário Botas. E em António Osório.

E em Joaquim Agostinho. E em o Herculano,

o de Eurico em promontório

(imagem de rapaz sentado em penhasco face ao oceano).


 

98

 

O tempo que dedico não desdigo

Uma sesta profunda é quanto peço

A minha altura não é quanta meço

Mas sou-amigo-sou-do-meu-Amigo.


 

99

 

Junho acaba-se, trabalhei as primeiras oito horas de seu derradeiro dia. Encomendo hoje os óculos novos. Revisito hoje o meu Irmão José Daniel. Sim, tenho comida & tabaco q.b. Algumas moedas na carteira, também. Ainda as nove se não deram, tomei café bem quente, escrevivo um pouco para não perder a mão.

 

Faz amanhã, 1.º de Julho, cento & dezanove anos que nasceu o formoso hoje-cadáver de Cândida L., materAvó de Hermínio. Calendário cósmico-privado, o de H. No seguinte dia, 2/7, completa 47 anos o Filho do Irmão J.D. de H. Idem cósmico-etc.

 

Quantos anos

(nem digo décadas)

perfarei ainda

de curso em corso?

Quantos pescoços

ainda (me) torço?

 

Fala-me.

Diz-me que sabes tu disto-&-daquilo.

Quem em Toulouse te deu dois cigarros & fósforos na noite.

Conta-me de teus lobos em sonhos, à neve azul.

 

Uma lareira oficiando lume em privado inverno.

Um animal amado como (a) uma Avó extinta.

Fazer por não ser vil mas naturalmente terno.

Não ser eterno, ser só papel & tinta.

 

Besame – se não mucho, un poquito al menos.

Ou, como diz a Bruxa-de-Maio, “acciona dinâmicas”.

O teu rosto acrescenta a luz, ai esses párpados amenos.

Nunca foste ou serás de rigidezes mecânicas.

 

Quando de amigos-euros precisei,

três perfizeram quantos encontrei.

Clara reiteração do adágio reiterado:

“Se queres perder um amigo, pede-lhe dinheiro emprestado.”

 

Fissura na cartilagem da cabeça da tíbia.

Algo incrustando-se-me no rim-esquerdo, a saber.

Saudades de Dirceia, de Melopeia, de Aliceia, de Políbia.

Na retinta manhã (d’ontem-&-d’amanhã), mui escrebeber.

 

Fazer o desjejum mesmo que à força-contravontade.

Fumar as passas-do-Algarve, ir-me às termas da bondade.

Dormir sem amanhã nem ontens, valer um passarinho.

E, co’ devido cuidado, subir a uma taça de vinho.

 

Sim, não longe nem perto ronda a morte principesca.

Talvez a preferira em o sono pela alva fresca.

(Mas preferência nos é jamais dada,

que morrer vale tudo: & viver, pouco-nada.)

 

Vadiar & vadear equivalem-se mais que por homofonia.

Velhas palavras me tornam novidade na poesia da Cidade.

Se me abro em versos? Se me fecho cada dia?

Q’importância tem tal isso? Ora, ride à vontade!

 

Não tem preço a hombridade digna de sua virtude.

Menos apreçável ainda é a rosa-da-saúde.

Parece não haverem loucos mas diversa lucidez.

(Também se cota o azeite pelo grau de acidez.)

 

Estrofe a estrofe, estância a estância,

procedo a metro a ânsia-distância.

Jamais nos refaremos mal, isso são águas-passadas.

Cada um, bem a sós, mal se dará a grandes-nadas.

 

Em lençóis húmidos embrulho o corpo-mortalha.

(Quando desempregado, invejo a quem trabalha.)

Aleitei pouco as Filhas, recorrente me-penitência.

Nunca soube (nem sei) agir cautelar-providência.

 

Peno-assombro hoje vielas de impérios-perdidos

que nem a victos chegaram à luz de meus dias.

(Só tu, bom Delfim, sensatamente porfias

com secos-&-molhados-&-objectos-perdidos.)

 

Alfafa tasquinhe a metafórica cavalariça

dos burros-(co)mandantes que não valem uma piça.

Os sites pornográficos esgotam à saciedade

quão merda é quem manda sem natural majestade.

 

Rifões-refrões de cultura-dita-geral

assolam a vulgalha gentia de Portugal.

Eu vou mais devagar, sou como o Boi-Ápis

que demora seis-mil-anos a dar cor ao lápis.

 

A minha Mãe? Em criogenia-fornalha-de-neve.

O meu Pai? Já nem à vidraça bate sequer ao-de-leve.

Dois Irmãos-Idos? Presentes no verso, mas de facto perdidos.

O que resta? Pois não vêdes Vós q’isto é tudo uma festa?

 

Avaliai-me, querendo, meu grão-de-impureza.

(Eu cá sou pai-físico de Leonor como o sou de Teresa.)

Lento é do âmbar o escorrimento cintilante.

Eu até era p’ra V. falar de A. – mas não falo já, adiante…)

 

Devi(n)das coisas receio-ruinosas catalogo em armazém:

a falta do meu Gato, a morte de minha Mãe,

a saúde das aves, a das minhas Filhas também,

mais vale talhar a mal do que a hipócrita bem.

 

Bem-vindas rosas luminosas homologo a alguém:

a vida do meu Cão, a vida de minha Mãe,

as virtudes suaves, as de minhas Filhas idem,

mais vale dizer que não do que todavia-porém.

 

Bifes espessos, daqueles em molho-cervejeiro.

Noites de motel sobre pernas abertas.

Sofrer de laranjas quando meteoalertas.

(& ser H. p’ra esconder ser-se Daniel Abrunheiro.)

 

Falo-te.

Será que te lembras d’ainda?

Eu lembro-me: eras (& és) linda.

Mas: fal(t)o-te?

 

Roupa a enxugar em humildes estendais.

Nem tudo uiva ou é monte lá dos vendavais.

Comprei tabaco na Sílvia, que é vesga de um braço

e me faz fiado para café & bagaço.

 

Manuel de Jesus Esteva Crina

gerou com sua Alice uma menina.

Josué Maria Alandro de Brito

gerou com sua Clarisse um rapazito.


“Sabes muitas modas mas tem o cu cheio de fodas”

– gritalha a obscena grei de minhas tascas.

Sim, frequento & uso convívios rascas,

sou da vileza mais chã & vou-me a todas.

 

Ponhamo-nos a pau com o caruncho – aconselho.

Tenho um quarto na rua de meu paterAvô.

Interessa mais o que escrevo do que o que sou.

De mim vereis mais mão do que joelho.

 

Bebi uma canada-dry durante a Volta-

-a-Portugal-em-Bicicleta-1972.

Sei bem de que é feito o meu andar-à-solta.

Sabei Vós de Vós mesmos que/como sois.

 

Circunflicto as minhas sobrancelhas

sempre que me deparo com vilezas.

Meu Pai era das bandeiras vermelhas.

Da vida não há pessoas ilesas.

 

Minha Mãe a todos os tostões contava.

Quando morreu, herdei cinco tostões.

No total, 35 ela poupara.

Os outros 30 foram p’ra meus ‘irmões’.

 


 

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Canzoada Assaltante