© Edward Hopper
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“Comecei
a viver com a luz, e não contra ela (…)” – frase do grande mexicano
Carlos Fuentes in Cristóvão Nonato.
Julgo
compreender tais palavras. Não retratam (nem retractam) o meu caso – mas
julgo-as possíveis, julgo compreendê-las. Julgo aliás muita coisa – e muito
erro, que me não farto.
A
tarde acaba-se-me. Desconheço que tipo de noite aí vem. Talvez uma pastilha me
ajude a dormir até às sete horas. Pego às oito, saio às dezasseis. Saído do
emprego, vou-me a conversar um pouco com o doutor J.S., rapaz prestabilíssimo
que me tem facilitado burocracias várias.
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Trabalhei
o turno 08-16h00m, dia até ora sem mor relevo. Algo fatigado: muita
andarilhança, muito estar de pé. Ingeri um almoço decente. Neste tipo de
instituições, a comida leva pouco sal. Não a desdenho, todavia: faz parte do
meu salário. Amanhã, folgo. Ando nisto-assim-assim. Arredia de mim anda a
versalhada de outras fases. Tal não me inquieta. Trabalho de momento (em)
outras coisas.
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O
século anterior não aniquilou a Poesia
Mas
este corrente (e nosso último, atenção)
Parece
prestar-se a tal electrorruína bem.
Não
sou de nostalgias difíceis, acho
Só
as fáceis me encantam como fácies
Digo
isto assim por ser do século anterior.
Assisto
sem abrir a boca ao circo humano
Não
choro nem me rio, assisto & passo
Tudo
parece remediado de tão sem-remédio.
É
de tradição, dizem, envelhecer mal & depressa
(E
sem ter lido o Camilo todo & todo o Eça)
É
capaz de; é muito capaz de; parágrafo estrófico.
O
meu século cheira-me a último, isso sim
Tenho
doente uma pessoa amada – e consanguínea
Resido
discretamente em cromagnonismo.
Mais
tarde, cearei a sós ante a TV congelimicroondas
Ração
medida à dose, imbecis de néon
Não
posso uma família? Mas andarilhar posso.
Com
quem falar de quê-quem-para-quê?
Almejo
(ou alvejo) alguma conversadoria
Entre
a alva anoitecida & a noite feita dia.
Tenho-me
volvido em figura-de-tela-Hopper
Frequento
os falcões da noite, as leitarias
Entre
as alvas anoitecidas & as noites feitas dias.
Falam
a meu lado de uma traição conjugal
Dizem
que a mulher o encornou, que não há dúvida
Moravam
na vivend’amarela, ele saiu de casa.
Restos,
rastos & rostos tristes, bem feitas as contas
Grassa
por aí muita infelicidade comezinha
E
se jantássemos fora hoje, fôramos normais?
E
quando o Universo parece feito só de segundas-feiras?
Quando
envelheceis raspando uma barba inútil?
Sim:
e quando-em-vez-de-enquanto?
Falo-Vos
de uma galáxia sem segredos
A
nossa humanidade cheira a ratos
Poupamos
migalhas, a morte vem de trigo-roxo.
Esta
noite, quê?, sem quem?, olha, calma
(Sei
que há só serotonina & nada d’alma)
Esta
noite janto fora, foi-se-me deitar a sombra.
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Com
literatura vou escorando as fendas vácuas que fazem perigar a muralha da minha
vida. Junho chegou hoje, era um mês que eu em menino amava. Já menino não sou.
Nem tu, meu bom Delfim. Muitos são os junhos que (com)sumimos já, desconhecendo
nós ambos quantos (se alguns) nos restam. A violência é quotidiana. As notícias,
de plástico. A boa literatura, não, antes pelo contrário. Com ela vou
escorando / etc.
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Chuviscos
aleatórios desde manhã cedo, a quarta do corrente Junho. Anteontem, surto
psicótico de um (ex-)co-inquilino da casa: portas, janelas, mesas, espelho
destruídos. O rapaz foi entregar-se à polícia, levando consigo a faca-do-pão.
Internamento psiquiátrico compulsivo. Pena do rapaz, Hermínio sente. Os pais,
já defuntos; irmão & irmã não lhe falam nem querem saber dele.
Sozinho-na-vida – e sem armas nem bagagens para esta. Um turno mais, hoje, das
16 às 24h00m. Ganhar o dia, poucos embora os cêntimos, consola-se Hermínio,
prag(ueja)mático.
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Incerteza
certa, há que contar com ela.
Contar
com ela – e, também, contá-la.
Dar-lhe
certidão d’ocasião – e d’ela-por-ela.
E
que escrita fique, não subindo ela à fala.
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Hermínio
deita-se no quarto violado.
Sudários
pobres, azul a manta-cama.
Estende
o corpo macerado de andarilhança.
O
dia foi suficiente, alimentou & digeriu.
Desperta
pela alva de pombas arruinadas.
(Digo:
as pombas da defronte casa-em-ruínas.)
Atira
arroz a essas aves livres & vorazes.
É
como que brincadeira d’entre rapazes.
(53)
(Fala-me,
Delfim, desses teus dias.
Quero
saber que luz seguem deitando.
Embala-me,
enfim, de litanias
& melopeias que é doce ir escutando.)
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