Romaria ao Espírito Santo
(Coimbra, 1943)
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Sim, penoso
& angustiante foi o dia de ontem. Já porém lá vai, escoado pelo sumidouro mortífero
da passagem-cronos. Hoje, não tão mal. Visitei M., que convalesce precariamente
de sua virose. A meio da tarde, reencontro-me a sós, tendo por única companhia
a minha sombra mesma. É a minha condição.
Arrefeceu. Ainda
me não passou de todo a tosse cavernosa. Faz hoje um mês que entrei no emprego.
O contrato dura até 19 de Setembro próximo. Depois, a incerteza. Muita mais gente
vive idêntico desamparo – mas cada um sabe de si.
Padeço (isto
é certo, não minto) de hipersensibilidade quanto a toda & mais alguma coisas.
Aflijo-me com
aspectos que a muitíssima gente passam ao lado.
Doem-me os
deserdados pedindo cêntimos nos semáforos.
Doem-me os
animais abandonados, na estrada estropiados.
Desconsola-me
sempre o espectáculo da ignorância atrevidota.
Aleijam-me a
sério as sevícias sofridas pela Língua Portuguesa nos meios-ditos-de-comunicação-social.
Para mais, as
superstições institucionalizadas campeiam impunemente.
A política é
espantalha.
A alienação futeboleira
é reles.
A facúndia
presidencial enche-me de urticária.
O parasitismo
das subvenções-parlamentar-vitalícias enoja-me sem retorno.
Rompe-me o
escroto o politicamente-correcto.
Pior: agora
pré-sexagenário, não descortino grande autoprotecção contra a ruindade de um
planeta sem alternativa.
Sim, sou um menino-anacrónico
– crónico & anacrónico.
Miro fotografias
de tempos idos.
Os meus Pais
mocíssimos na década de seu casamento, que foi a de 40/XX.
Aquela ocasião
em que foram de romaria à Feira do Espírito Santo.
Quando subíamos
(éramos vivos todos) aos moinhos de Lorvão.
Estou só.
Deito-me na
cama que me (des)fiz.
Leio devagar
quantas horas posso.
Assisto às existências
alheias – às quais sou invisível.
Passei ontem
na minha Rua (mora lá a irmã do meu Amigo Delfim): tudo fechado, nenhum
comércio, nem uma persiana descerrada.
A minha
patermaterCasa: em ruínas.
Nem sinal do
meu Cão Amarelo.
Longe, roupa a
enxugar no primeiro-andar do prédio cujo rés-de-chão é o Café Danúbio (Rua do
Padrão).
Veículos de mercadorias,
mulheres-a-dias.
Cinzentura geral
de perspectivas.
Sobra-me um
dente natural – os demais são de resin’acrílica.
Vou quarta-feira
rever, sem o reaver, o meu Irmão Zé.
Autocarros carregados
de subassalariados.
Trivialidade &
banalização da violência-doméstica.
Tráfico de
droga à fartura toda.
Banqueiros gatunos.
Ex-governantes
corruptos até a medula.
Podridão das
noites disco-boîteiras.
Arredores socio-cancerígenos
da Grande-Lisboa.
(Idem
Grande-Porto.)
Livros de
merda consumidos em massa por leitores de merda.
Simplismo autisto-facilito-pauperizador
dos exames do ensino-secundário.
Global anemia
intelectual da maralha universitária.
Mais simples
seria a vida evitando o evitável.
Um regato a
cuja margem me recolhesse sem destino.
Álea de
cedros & pereiras-de-inverno guardando o século.
O meu
paterAvô de bicicleta daqui a Antuzede.
Ninguém ter
fome, ninguém ter sede.
Ninguém dormir
ao relento sob cartões-frigoríficos.
Nenhuma opinião
obrigar a tua a sujeitar-se-lhe.
Alguma mulher
lavada, de boas palavras não-sentenciosas.
Filhos infantemente
prósperos brincando sem coleira-electrónica.
O milagre dos
livros-bons devindo côdea-nossa-de-cada-dia.
As praias doiradas,
ébrias de azul tinto de verde.
Noites maritais
urdindo a suma cumplicidade de dois.
Ninguém se
dar ao luxo de morrer por enquanto.
Pessegueiros vivos
como diademas de luz-açúcar.
Laranjeiras como
ourivesarias verticais.
Mas: João
A.R.A. não tem ilusões quanto à sua companheira.
Ela vai
morrer mais-dia-menos-dia, é fatal sua moléstia.
Hermínio conversa
com João, batem surdos instantes.
A churrasqueira
serve refeições populares, haja moedas q.b.
Passam os
expressos-rodoviários em todos os sentidos.
Levam gente
que desconheço rumo a sítios que não povoei.
Pronto para o
que der & não der, vier & não vier.
Está M.
doente, quero tão-só que se recomponha.
Passa a
carreira de Cantanhede, terra dos manos Cortesão.
Passa também a
de Mira, onde se veraneava Delfim.
(Também Hermínio
passa, vai passando, que voltar não volta.)
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Não minto
quando digo que já conheci a bondade alheia.
Ou quando
recordo olhos bonitos em rostos para mim perfeitos.
Trabalhei oito
horas, ganhei para a ceia.
Levei alguém
ao médico, ali nos prédios estreitos.
Vi o
salazarista na tasca do S., ali à Rua das Rãs.
Conversei com
dois gentios que devagar se avinhavam.
Regressei por
aquela rua onde antigamente moravam
J.M. &
L.A., mas antigamente há décadas de manhãs.
Fui o triste
de costume, chateei ninguém, cumpri horário.
Faltam-me
tipo onze dias p’ra receber o salário.
Preciso de óculos
novos, de sapatos também.
(Mas já não tenho
Pai nem já tenho Mãe.)
Leocádia
surge-me em sonhos, vaporosa rosa.
É de vastidão
ventral, d’amplo delta erótico.
Problema: é
casada com o doutor Barbosa,
mui rico este
é mas também esclerótico.
Sim, fui
utente já de alguma alheia bondade.
Hoje-em-dia a
não caço, sequer a procuro.
Eu ainda
tenho passado, só não tenho é futuro.
Sou uma só-sombra
por meandros da Cidade.
Se ando
zangado? Não ando. (Ou julgo que não ando.)
Isto é de
feitio, que eu botas não lambo.
Verga-me
tão-só a porra da melancolia,
que me acossa
& caça de noite & de dia.
E quando fui
núbil? E útil? E volátil?
E era de vint’anos,
elástico, retráctil?
Já lia bons
versos, já com demora escutava
a pessoa que
m’em frente para mim falava.
Fumo cigarros
em Coimbra, recorro a autocarros.
(Por
enquanto ainda ganho p’rò passe & p’ròs cigarros.)
Tenho
conservas no quarto amail’um candeeiro.
Neste
livro sou Hermínio; de resto, Daniel Abrunheiro.
Urdo
este livro em perfeito espelho-de-inutilidade.
(Não
vejo que interesse à geral vacuidade.)
Sofro
o meu Rodrigues Lobo & o meu Sá de Miranda.
E
no Louriçal fiz parte (a clarinete) da Banda.
Operários-a-termo-certo
ocupando pensão-quartos.
(E
os riquinhos-ricaços cada vez mais fartos.)
E
as nossas donzelas envelhecendo ex-mães:
&
órfãos sem manteiga nem sombra de pães.
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Aqui
onde me vês & lês, ó gentil Delfim meu Amigo,
lês
& vês um homem que de seus errantes, erráticos & errados
pretéritos
é involuntário contemporâneo próprio.
Pelas
ruas miro os demais cidadãos por enquanto viventes,
as
aves que embelezam a urbe tão envelhecida
a
meus olhos, que rejuvenescer já não podem.
As
noites devieram néon-tristes, nada me as resgate,
janta-se
a sós ante o televisor embrutecedor,
aliena-se
o solitário da humana empatia d’antigamente.
E
agora como vai ser?
(Pergunta
tinta de perplexidade.)
É
um agora por escrito proscrito.
1 comentário:
"Livros de merda consumidos em massa por leitores de merda.
Simplismo autisto-facilito-pauperizador dos exames do ensino-secundário.
Global anemia intelectual da maralha universitária.
Mais simples seria a vida evitando o evitável."
Um resumo do mundo suscinto. Parabéns!
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