© J.D.A.
130
Domingo,
14 de Março de 2021
O corrente domingo é de sol aberto través o vazio decretado. Não é dia para, vinda a noite, ir de wine-&-dine com alguém. É antes de pantufar pijamamente pelo tugúrio próprio. Tem a sua graça, apesar de tudo. Não é necessário forjar aparências frustes. É mais de ir anotando minúcias que à mente sobrevêm. Como aquela de 1977, durante a solar Volta a Portugal. Terá sido esse o ano de Adelino Teixeira? O Tio Alberto era vivo. Passados três anos, já não. É muito ano, muita década ardida já. Planos para o Verão que se segue? Nenhuns. É deixar arder. Vi ontem uma série de imagens narradas sobre a terminação física de Miles Davis. O grande músico sofria. A morte livrou-o de quaisquer dívidas ao sofrimento. Temos a música dele ao dispor, liga-se a máquina e ela jorra impetuosa. É muito boa, a música de Miles Davis. O Tio Alberto não era músico. Foi cesteiro de boa qualidade. Atravessou a vida como quem vai ali ao deserto sem ao menos uma garrafa de água. Sei isso. Mas é domingo, o sol faz do mundo paleta, tudo parece mais ou menos bem, para uns mais, para outros menos. Olho de seguida o rosto de Rainer Maria Rilke. É visão forte. Está ali olhando-nos vivamente. É um gigante. Vou de quando em vez às páginas dele. Regresso sempre saciado. Penso nele como quem vê um homem passando a ponte fluvial. Alguém num quintal amanhando plantio. Outro domingo, um desses domingos de há cem anos, quando aquele rosto se movia em a bruma. Como pó-de-ouro, minuciosa poalha-áurea, o rosto do poeta Rilke infiltra-se, tal recordação, no catálogo espectral que me acompanha. É onde há muito residem o Tio Alberto & o músico Miles D. São seres interiores. Posso referi-lo em alguma conversa pertinente – mas não hei de momento quem a quem possa tal interessar. Estou sem planos para o Verão – mas pretendo, ainda este mês, ir a compras mínimas: lápis novos, claro; dois isqueiros; cargas de tinta-permanente; bolachas (canela, limão, baunilha, maria); meias de lã; algum livro. Distraio-me – e então surge a gravura da mulher com gato ao colo, em fundo a barraca onde vivem ambos. A mulher semicerra o olhar, o animal dorme em aura de santidade. Os anos entre mim & a gravura põem-se a bater a cauda, espuma esparadrapa pepitas baças, farrapos & traças, o Tempo é doido, uma pessoa pode perder-se nele como ante um muro sem depois. Ao longe (mas não demasiado longe) alcanço o cume onde viceja a antiga Póvoa do Pinheiro. Já entardenoitece sem regresso nem remédio. Já me ocorreu mirar estas paredes. O jantar está garantido. Li o topónimo Swansea num conto de Rachel Gould intitulado Thucydides. Agora, porém, são estas linhas mesmas que leio convosco. Um homem negro pergunta qualquer coisa a um recepcionista de pensão (quartos ao dia, à semana, ao mês, à década). Um branco grisalho veste o casaco, que é azul, de bom corte, amplo, próspero. Tudo isto partilha a solidão do domingo. Não há que (nem como, aliás) ter pressa. A morte, tal o jantar, oferece garantia. (E garantia não é contracção de garanhão com a irmã-da-mãe-ou-do-pai.) Vi o rosto de um catedrático de Letras, hoje extinto mas à data da fotografia moço ainda. Esse jovem professor sorri. Era linguista, estudei por o manual dele há quase quarenta anos. Monteverdi já soou no pequeno gabinete onde dactilografo os manuscritos possíveis. Também a bela luminosa Damrau já cantou. Outra coisa: desde anteontem que o meu telemóvel recebe condoídas & solidárias & carinhosas mensagens lutuosas. Parece que o pai de uma senhora T.B. morreu. Pai dela, não meu. Ora, alguém deve ter distribuído o meu número por essa malta toda. Não conheço a nova órfã, não conheci o senhor seu pai. Conheci o meu, que se re-uniu a seu irmão Alberto há quase 27 anos (Abril próximo, dia 24, redondos 27). Já me fazem sorrir, estas mensagens perdidas de alvo. Ainda respondi a algumas – mas continuam outras chegando. Quando o meu Pai morreu, eu não tinha telemóvel. Não se multivulgarizara ainda tal penduricalho. O telefone era fixo como as estátuas & as árvores & os remorsos incontornáveis. T.B. & eu sabemos como é não olhar para cima. Só o Tempo pode servir de soro-fisiológico, por assim dizer, a tal tipo de luto. Ou então Karlheinz Stockhausen em modo Erwachen para violoncelo, trompete & sax-soprano. A máquina dá. E o auto-retrato de Albrecht Dürer. Tudo encontra um lugar – até o esquecimento, parece. Até o ex-domingo, no cemitério dos dias.
Sem comentários:
Enviar um comentário