19/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 146

© DA.


146

Quinta-feira,
18 de Março de 2021


Melro


Uma das aves utentes do meu maná diário é o melro.
O maná é diário – mas ele é mais irregular.
Aparece por alta-recreação só sua, sem contas a prestar.
Amo o seu brilho de nigérrimo voo, incisivo recorte.
Come pouco & depressa: como um patrão de pequena-empresa.
Já sonhei com ele – não com melros: com ele.

Sentado

    Numa das derradeiras fotografias, está sentado num muro de jardim. Nota-se bem ser de manhã: a roupa imaculada, como recém-envergada, sem folgas; o calçado lustral de graxa fresca, o todo de si mui ataviado. É a meio de uma década agreste – mas talvez o sejam todas. O ponto está em saber derradeira esta série de fotografias, uma das quais o vê sentado, bonito, ataviado, desconhecendo o que aí vem.

Crimes

O jornalixo-mirone triunfa neste País fruste de vistas.
Espécie de gula necrófaga faz babar os jornalixeiros.
A isto acrescem as pseudo-feministas, os veganistas,
os pseudo-anti-racistas & uma carrada de paneleiros.

História

    Ou antes: uma não-história. Digo: texto que reportasse da força da ausência, a autoridade da mudez, a indiferença como modo & filosofia de vida. Parece-me muito interessante. Caminho de pinhal por onde siga ninguém. Praia no inverno mais gélido. Ruínas de sanatório sem fantasmas sequer. Céu sem um avião. Jarro sem flores. Flores sem jardim. Jardim sem jardineiro. Muito interessante isto – isto de, em vez de falar sozinho, falar para o não-boneco.

Coimbra

    Vias arteriais abrem caminho no ar de todos, azulejos & árvores aguarelam a visão, permanece certa confiança fundamentada no uso de anos indesmentidos.
    Os domingos são terríveis.
   O sabor a derrota pode ser, se não evitado, procrastinado mercê de constante releitura: rostos em vez de caras, lares em vez de construções, percursos em vez de carripanas, linhas em vez de pontos.
    Há que nascê-la sempre, mesmo (ou sobretudo) se em pessoal orfandade. Conhecer liberta; reconhecer livra.
    É-se derradeiro guardião de um tesouro não-cobiçado. Também a intransmissibilidade se aprende – mais ou menos penosamente, primeiro; indiferentemente, depois.
    Minudências conjunturais implicam trajectos: resolvidas aquelas, tornam, a estes, sinónimos do tempo mesmo que levaram & os levou.
    Em um daqueles domingos, uma pomba era devorada por pombas. Aconteceu perto do Palácio da Justiça. Houve quem viss’e’screvesse o que acontecia. É desde então um rodapé da história-individual. (Ou não-história.)
    Choca, dentro, defrontar tantos monumentos interditos. Ou receber nomes de mortos em vivas epifanias, aparições recorrentes que se mesclam às ruas mesmas onde se dão.
    Serenidade é também possível, arejando a ideia por as zonas que o pato-bravo do XXI não haja ainda maculado. Não se espere artista em tal despovoamento, porém. Ele não é necessário.
   Em suportes oblíquos, fotografias de Queimas repetidas, gerações umas de outras clonadas, tradição por imitação, nada de grave. E, de dois em dois anos pares, a Rainha Santa, a multitudinária Senhora de Aragão a Coimbra via Trancoso.



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