23/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 152 a 155

© DA.



152

Segunda-feira,
22 de Março de 2021

    Há tanto heroísmo no cacilheiro quanto na caravela. Vadear o rio para o pão-de-cada-dia é tão bravo quão levar Cristo ao indígena, deste sacando o ouro & a canela. Isto vou pensando enquanto o mundo exterior brinca às coisas sérias. Modorra digestiva, beatitude pós-prandial: assim vou jiboiando a nova primícia vesperal.
    Mas que se lixem heroísmos. O tempo interior quer outros valores, não aceita propagandas estafadas, exauridas, maninhas & daninhas. Imaginário & real equivalem-se então sem esforço. Tílias majestosas, rotundos penedos que levitam, coelhos-bravos cartografando o mistério simples do segredo-d’existir.
    Nenhum jesuíta, nenhum mafoma, nenhum semita – a solidão da rejeição é boa, leal, concreta companhia. A nave é tripulada no sentido da clareza? Decerto não. Da claridade, então? Quanto possível.
    Aldeia & universo não se contradizem tanto assim. O factor-humano é totalitário – por ser único. Regionalismo & pantelurismo são afinal manos.
    A atitude estudiosa compensa. É eficaz contra as múltiplas formas que o deserto incarna. Trilhos individuais aceitam marcas partilháveis. Assim, pelo menos, tem sido algumas vezes.

153

    Idílico, edénico, floral, o ar puro como nascimento de bicho, a água límpida como olhos novos – é como alguns têm presente o panorama da infância. Os pequenos infernos vêm depois – para ficar, como o Toyota de antigamente.

154

    A avó prepara a ceia para nós todos, que somos ela & eu, mais ninguém. A fotografia do avô preside à assembleia de dois. Bule de chá, pão-branco, mel, queijo-de-cabra, presunto, tomate, manteiga, bolachas-torradas. É fortuna. Sou-lhe muito grato. Vivo tempos-túneis, a que falta luz-ao-fundo. Ela ampara-me com o uso do quarto, duas refeições, alguns trocos para quando saio. Saio pouquíssimo. Vou à cooperativa ver se há ofertas de trabalho (obras, agricultura, limpeza de matas ou chaminés, por aí). Já não vou à taberna. Encontro gente na praceta, converso um pouco, ouço mais do que digo. A avó não moraliza. Não me inculpa pelo casamento que em má-hora fiz & em boa desfiz. Sou duas vezes filho dela, mais ainda desde que os meus pais morreram no grande incêndio de 1982. Não completei estudos. Quando morrer, completarei tudo.
    A velhota quis comprar-me uma motorizada. Recusei. Antes quis uma bicicleta em segunda-mão. Comprou-a ao Etelvino, serve-me de chochó para os poucos sítios aonde vou. Em Maio, vou nela à beira-mar. Faço a senda do pinhal, sei onde há esconderijos ideais para coisas más – ou pelo menos ilegais.
    Comemos frugalmente, não é nosso hábito empanzinarmo-nos nunca, à noite então muito menos. Não sei o que farei sem ela. Digo: se lhe sobreviver. Tudo pode acontecer. Aos meus pais aconteceu – e o meu pai era só uma vez filho dela.

155

Um dos homens desta rua: Ramiro; por ofício, bonecreiro.
Tem a oficina em pátio interior, onde se reserva.
Bonitas criações torna ele reais, de santos muitas delas.
Outras, de brincarem meninas, futuras costureirinhas.

Desta rua, uma das mulheres: Noémia, peixeira.
Nas grandes necessidades, apara de parteira.
É de desabrido falajar, mas não má pessoa.
Íntimo desgosto de amor a quedou solteirona.

Abel passa cedo sempre, mesmo aos domingos.
Aonde vai ele, ele o sabe & ele o guarda.
Poderia acertar-se o relógio por sua constância.
O pai era Ezequiel, há muito esquecido seu pó.

Um pinheiro-manso ganhou fama, a oeste.
Além da casa de Monsieur, o francês aqui radicado, sobe.
O estrangeiro cuida dele com minúcia paternal.
Sabe bem ao olhar ver o vento na brincadeira com ele.

Benedita, viúva de Celestino, já não abre a botica.
Passou-a a uma sobrinha reles, diamantina, em hora-má.
A Dona Dita não sai de casa, vai se tanto ao quintal.
O Jaimito da Mercedes leva-lhe os necessários.

Estais talvez lendo isto como se isto fôra poema.
É porque não aproveito as linhas até o fim.
E porque mudo parágrafo a quaternário ritmo.
Percebo a V.ª confusão, mal nenhum nos faz ela.

Há mais verdade neste elenco do que aparentar pode.
Rosalinda, que sofria mau casamento, logrou livrar-se.
Marcelino, seu irmão, deu uma tosa no cunhado.
Esteve preso um ano, quase o matou, foi um valente.

O homem de Rosalinda, fê-lo a vergonha fugir desta banda.
Já Marcelino, coitado, morreu pouco depois de solto.
Foi a doença-do-caranguejo, enxugou-o em dois meses.
Rosalinda temeu que o homem, sabendo, voltasse – mas não.

Em trecho desta rua mesma vi eu muita vez rosas à brisa nova.
As mesmas rosas, poalhadas de luar, eriçando o frio.
Já então eu as sondava para factura de trova
que fixasse o coração ao gume de que saiu.


2 comentários:

cid simoes disse...

FAZ BEM ACABAR O DIA COM UMA BOA LEITURA.

MUITA SAÚDE!

Daniel Abrunheiro disse...

Saúde, Cid!

Canzoada Assaltante