© DA.
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Sábado,
6 de Março de 2021
Atmosférica passagem da atenção sensorial – em curso. Cada um a sua lareira: externa ou em seu imo. Uma doida rancorosa bota fogo a um andar de pensão. Um homem morre por causa dela. A norte (muito a norte), à face do lago gelado, silhueta de outro homem, Olaf lá, cá seria Olavo. Estou nisto enquanto fora vigora a luz dos campos, adequado silêncio, como manta, releva as culturas primevas. É tudo um pano sem rasgão, não agora. Como se em um para-além, de que retorno não há, houve nunca, jamais haverá. O homem Gabriel tem um cão chamado Alberto. Conheço-os, gosto de ambos, conversamos muito os três, embora agora já não tanto.
Outras facetas planetárias irrompem por as máquinas-alienantes. A humana é espécie de profunda degradação. Uma pessoa vê-se ante lances & perspectivas de perigo latente. Quem controlar a (des)informação, mama da manada. Os hipermercados são as bibliotecas mais pujantes. Por África, as ex-colónias, ora pseudo-independentes, mostram, de si mesmas, total incapacidade de autogovernação. Ao (des)mando branco sucedeu a corrupção preta – e a merda continua a disfarçar-se de incolor. O humano, qual seja a cor, é irremediável. Acho fortemente isto.
Mire-se todavia a Tarkovsky, Kurosawa, Wenders, Bergman. Escute-se porém a Vivaldi, Händel, Mozart – e a Deus-em-Gente, vulgo Bach. Alegria, dessa mais escura, se curta da Santíssima Trindade da Literatura do XX, a saber: Pessoa-Proust-Joyce. Ou Cesário-Pessanha-Belo. Aqui (muito) a sul, em uma casa anónima, pode um gajo vincar & vingar valores que, por escrito, sempre podem fazer, se não de luz, ao menos de impressa sombra.
Um Avelino revê-se no filho dilecto, Pedro. Movimentações roedoras do regime. Artefactos explosivos guardados em caves carvoeiras. Pança do rei, anemia do herdeiro, santidade plástica da rainha, parasitismo do conde irmão do monarca. Pedro vai de visita ao lar onde, sereno, apodrece Avelino. Conversam no jardim da instituição, entre lírios & gatos.
Carolina Fonseca, viúva como a Lua, ampara os pobres da Rua de S. Francisco. Abriu à rua uma loja de seus prédios. Estendeu mesa-corrida, bancos pregados ao soalho. Panelão de sopa sobre toalha de linóleo em xadrez alvo-rubro. Seira de pão. Vinho de baixo teor fulminante. Laranjas, pêras, maçãs, figos quando os dá a figueira exposta no pátio traseiro.
Digo-Vos, em este sábado morno, que a vida corre – enquanto, nós, gatinhamos. (É verdade, a sentença anterior é verdade.)
Jaime António & Estêvão Miguel, primos em primeiro-grau, vão à pesca no Lago Frigo. Jaime é dono do bote; Estêvão tem apetrechos do melhor que há. O sítio é deveras aprazível. Já aqui vários corpos foram inumados. Digo: na água. As percas roeram tudo, as ossadas dançam no fundo as mais surdas & mais desconjuntadas valsas. Quem matou essa gente de arquivo-morto na polícia? Nem Jaime nem Estêvão, atenção. Jaime trabalha de faz-tudo, nenhum conserto lhe é estranho ou escapa. Estêvão é amanuense em repartição camararia, toca rabeca em um rancho, o sossego é quanto quer. Os crimes sepultados no Frigo são de décadas que ficaram sem conta. Alguém perdeu (alguéns perderam) a vida, alguém se safou sem punição. Agora, dois homens num bote sacam percas, essas necròfagazinhas do diabo.
Mais:
Infinitude de perspectivas. Um disco de 1971. Um livro de 1945, compêndio (ou antes: crestomatia) de textos de 1927, 1937 & 1942, reeditado em 1983. Lista telefónica de 1970 – nunca usada, é o tipo de livro que aprecio muito: muitas personagens & mui pouca acção. Ângelo & Filipe, duo pianista-contrabaixista esta noite (5.9.1954, domingo) no Salão-Prata do Peninsular. Violeta, a cantora, faz dois números com eles, depois volta ao posto de croupier no Salão-Ouro. Tudo perfeitamente oleado – o gerente é alemão.
Ou então:
Paulo Renato, Rogério Paulo, Santos Manuel, Ruy Furtado, José de Castro, Barroso Lopes, António Assunção – elenco da infinita noite (noite como representação). Ramiro Correia – marinheiro afogado. O número 4 pertence ao Maleiro. Elói & Pimentel defrontam Nunes & Maricato na primeira eliminatória do Torneio de Sueco da Beneficente. São todos como constantes marcas – ou marcos – em a volubilidade atmosférica de que penso já V. ter dito alguma coisa.
Também recorrentes, clarões das sinapses (afeição, rejeição, esperança, dúvida, fixação, pudor, desejo, obstinação, procrastinação, fatalidade, errância, domesticidade) pontuam a correnteza das horas. Flúi a inevitabilidade. Tudo, aliás, flúi: acho que a tal chamam entropia. Ou coiso.
Ou, antes, depois talvez, não interessa, em uma vivenda entre carvalhos que sobem do cascalho geométrico, mansão iluminada na noite, as sombras perfumadas à brisa entorpecente. Ele que chega, que entra na casa sem porteiro, muita gente no salão mas toda de costas, depois essa multidão vira-se para ele, homens & mulheres mostram todos & todas o mesmo rosto por horror repetido ad nauseam.
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