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Terça-feira,
16 de Março de 2021
Ouço vozes.
Não alucinadamente.
A máquina fá-las falar.
Um homem chamado Guilherme Botas, defunto há muito. Outro: Eduardo Veras, prisioneiro há vinte anos por autoria-intelectual de um triplo-homicídio. Interessa-me escutar como entoam a sua oratura. Bastantes mais fazem procissão pelo adro da minha atenção. Não vou por simpatias ou repugnâncias: toda a entoação me interessa. Osvaldo Tura, cultor de messianismos de pacotilha. Jonas Salgado, topógrafo de ofício, escultor de miniaturas por íntimo chamamento. Penélope Trina, historiadora de trânsito urbano. Adriana Bosque, carpinteira, figueirense de nascimento, daqui tão perto. Galeria acústica rica – não me sinto só.
Massiva correspondência é facilitada pela maquinaria hodierna. Joga-se muito no pano-verde dessa ilusão. Ouço vozes de gente que se perdeu sem autocrítica no turbilhão da propaganda. Gregório Seixas, pai-de-família, aterrorizado por desconhecido abismo desde menino. Somos vizinhos intermurados. A tempo, percebi que é possível aprender sempre – não tudo, enfim, mas muito do que as vozes versam. A senhora Clementina Rodrigues lava a igreja há quarenta e cinco anos. Não se lhe conhece um suspiro, um arrependimento, uma ambição, um despeito. O Jesus dela é lavável. A voz dela não treme nem brada. A menção a Clementina faz-me recordar um homem suave, civilizado, adepto de literatura-detectivesca, que era padre católico. Chamava-se Saul Olival, era já anoso quando, por duas vezes, conversámos. Não era expansivo. Era, antes, algo melancólico. Referi-lhe & recomendei-lhe a bibliografia de Nicolas Freeling. Ele manifestou-me genuína gratidão. Estas pequenas coisas dão valor vocal à existência. O que se disse – mas sobretudo o como se disse. Tudo documenta a qualidade eterna da efemeridade. Do crime à esmola, da tara à bondade, do segredo à interrogação, da escada à poça.
Celeste Vargas, desde florita, dança.
Na praça, entre o espelho-de-água & a loja verde.
Cãezitos curtindo o sol, pombas filmando o chão.
Nomeio as vozes na ilusão da pró-inteligibilidade: Gil Marta, livreiro; Adelina Montarroio, doceira; Apolo Tambor, oleiro; Virgílio Sames, piloto; Abel Parque, fotocopiador; Telmo Rios, agrimensor; Hilária Botelho, hoteleira; Selma Filipe, herbanária; Celestita, dançarina. Todo este povo audível vozeando sentidos. Ninguém parece imune à perversidade. A virtude é menos atraente, parece. E as ambulâncias, de vez em quando, rasgando a noite aos gritos, urrando uma pressa que alvoroça, gélido azul, gume vozeado. Topónimos próximos & distantes mapeiam mentalmente a prodigiosa quimera da una diversidade do mundo. Sara Martins, de Alcoentre; Sabine Kaltz, de Wien; em Tentúgal, Abílio & Justina, em Tacoma, Michael & Lorraine. Alguém lhes é de sangue. Algo sonham. Alguma coisa temem. De muitos se recordam. Talvez até projectem. Eucaliptos na aridez do acesso ao deserto. Ângela Silva, de Setúbal, enfermeira-geriatra, ela mesma já entradota. Ouço-a falando à porta do prédio com Fernando Mendes, o carteiro. Fecho os olhos para ver as palavras que trocam. É o meu jogo favorito. Sempre foi. Sê-lo-á sempre.
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Acabei saindo um pouco, fiz-me por a tarde meã à Cidade. Ainda o prolongado esvaziamento faz dela uma espécie de estrangeiro. O sol é largo, até o frio foi exilado. Haver gente, há. Não se dá todavia bulício. Bate o sol na despojada quietude aldeã da dita Lusa Atenas. Acabei não trazendo moedas suficientes para o que me propunha. Vou ter de escolher: bolachas ou lápis?
Em pleno Março meado, as sombras refrigérias da Sereia dão-se-me com a bondade de sempre. Não é mau, estar vivo través seus panos oxigenados. Torno depois volta por Celas, Bissaya Barreto (ex-casa do meu Irmão Zé, mais sítio do malogrado doutor Moura Relvas), Afrânio Peixoto, Olivais, Espírito Santo-que-Deus-tem. Ter por aqui vivenda – não seria a minha pior ideia. Tovim. Ares altos, luz supina. Elísio de Moura, Solum/Calhabé. Conheço isto, reconheço-me nisto. A este in loco pertenço. É tão minha identidade quão o nariz que levo à cara. Já decidi: guardo o moedame, nem lápis nem bolachas, hoje.
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Sento-me em pedra talhada, miro um palácio de remotos afonsinhos.
Já aqui tenho escrito, mais vezes aqui assentei praça redactora.
Até aqui, vi alguns mendigos: quebrados, barbados, sozinhos.
E mulheres de sacos-compras, raça invicta, reproducriadora.
Mascarilhada galeria destes dias claustrais & pandémicos.
Toda a gente quer Abril, ao sol de remoçada liberdade.
Macilentos, os semblantes nunca foram tão anémicos.
Eu ando de ferrugem óssea, anquilosa mobilidade.
Tenho autocarro às seis (dezoito, pela volta redonda).
Não tenho é vint’anos, sigo ao triplo de tanto.
Inexiste do Tempo quem s’evada & s’esconda.
É Ele o vero único global esperanto.
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Cedros, ciprestes:
labaredas prestes
a fulminar o céu.
(Antes ele que eu.)
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Correu para o ralo a terça-feira – sem que me tenha sido possível resolver as ridicularias contemporâneas, de que é exemplo-mor a “linguagem inclusiva de género(s)”. Puto que pariu tal merda politicamente-cu.
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Anda uma pessoa na rua. Impediram o trânsito automóvel, escavações de saneamento em curso. Tem chuviscado a intervalos. Ainda decorre a manhã. Num quintal de vivenda próspera, o pinheiro-manso parece um urso molhado. A luz é mercurial. Muita gente a acha deprimente – mas não esta pessoa. A esta pessoa, interessa saber como está a avó. A velhota tem estado doente. Vai a pensar nela quando entra na pastelaria para tomar uma bebida quente. No momento em que lhe trazem a meia-de-leite, desaba a monção. Correrias trôpegas, inabilidade de guarda-chuvas, interjeições chocarreiras. Isto tanto pode ser a vida toda quanto a vida parecer metade de uma manhã. Outra pessoa cuida da velha senhora. É paga para isso. Tem feito um trabalho limpo. Há um par de dias que a avó não fala. Tenta mas não pode. É o crepúsculo dela. Meia-de-leite-pão-com-manteiga-três-euros-&-dez. Seiscentos-&-vinte-escudos-dos-antigos. Toma-&-embrulha. Autocarro da linha 7. Em poucos minutos a verá.
Queria falar-Vos hoje, ainda, de outras figuras. De Manuel Damião, que trabalhou sempre: balconista de informações, guarda-nocturno, ajudante de motorista, servente de pedreiro, explicador de Latim-Grego, nadador-salvador. Casou-se já depois de ter (des)feito cinquenta anos. A senhora dele, senhoria de dois prédios, precisava de um auxiliar, condoeu-se do seu ar de urso à chuva, o seu ar de pinheiro-muito-manso. Correu bem a Manuel Damião, não pode dizer-se que não.
D. Julião Sarmento, outra figura da minha caderneta. É operado na terça-feira naquele hospital privado ao pé do antigo observatório meteorológico. Tiram-lhe o baço, não sei se mais alguma coisa. Com outros nomes, outros empregos, outras condições, tem sido meu amigo toda a vida adulta. Espero que lhe corra tudo bem. Andava amarelado, má cor quando não de flor.
Cão velho, quase cego, dormindo na varanda. Que memórias lhe ladrarão na bruma? Que lhe dá Morfeu?
Impilo meus aludes. Gravura de habitação com telhado de colmo. Estado colabescente do muro de terra coalhada de pedra. Na noite estabular, a quietação dos cavalos em recolhimento – como monges de paz com o Ser-Orado. Mansidão das esferas astrais, qualidade etérea do esquecimento. Viúva mais de quarenta anos, ainda assim a velha Cristina manteve em labor a azenha que peça a peça o homem da vida dela ergueu a favor da água. Flicto os meus nós.
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