29/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 174 & 175

© DA.


174

Domingo,
28 de Março de 2021

    Das alturas rochosas o clarão lilás
    aveludava o instante imperecível
    em que a pessoa se sente até capaz
    de sentir como vero o inverosímil.
    Enfim, é uma maneira de pôr a coisa. É, também, modo criativo, ou antes, lembrança criativa. O italiano G. Guareshi & o colombiano G. Márquez não enjeitaram, de modo algum, certa afim criatividade jornalística. Por mim, há muitos anos que não faço jornalismo. Deixou de ser água em que nadasse. Escolhi sair: e julgo tê-lo feito a-tempo.
    Bordado eléctrico fulge na cidade enegrecida.
    A mansidão é conquista sozinha, não tem receita.
    Rua-da-Glória-n.º-4, em quarto-de-despedida,
    ninguém ali se levanta, ninguém ali se deita.
    O principal parece ser incomunicável. Todavia, uns raros logram estender comunhão a outros não menos incomuns. Talvez seja uma espécie de regra sem violação possível ou provável. O que se sabe: Está remediado o que não tem remédio. Fernando Jorge Nogueira Alves assim praticou a sua vida. A chave dele é a Oito. A pensão tem doze quarto, dez no activo, dois servem já só para arrumações.
    Quando em aventura diária anoiteço no lixo
    Quando vou ao lixo deitar fora o dia
    Quando o dia mesmo despe a pele de bicho
    E sentido não faz já o que sentia.
    Ele há sempre maneira alternativa de fixar no papel algo que por algum tempo escape ao fogo. Se puder ser dito (& feito) literariamente, interessa-me. A disparidade operatória não obsta, antes estimula. Estive ontem com Pierre Gamarra, estou esta noite com Mario Soldati. É movimento muito aprazível. Ao jantar, tomado de pé na cozinha, já tinha concluído o Gamarra muito antes mas pensava ainda em elementos da leitura. A passagem para o Soldati foi suavíssima. Não tenho pressa. Reajo a qualquer reminiscência de sofreguidão ledora.
    Domingo derradeiro de Março, geral mediocridade.
    (Pessoal também, não há que escamoteá-la.)
    Quando sair, saio; quando não, fico na sala.
    Ainda algo depende só da minha vontade.

175

Casas bordando o sopé da colina
Celeiros espalhados pelo vale
Canal central, fartura de águas úteis
Cinética transparente dos anos

Humanos singram no mundo inexplicado
No tempo idêntico cavam a diferença
Uns participam mais do mistério
Outros aceitam o que lhes vem à boca

Quem faz mal a quem, onde, porquê
Quem solta o bem, a quem, porquê
Em casas de cores discretas, neutras até
Pelas matas, arroios como veias de céu

Além do culto da terra, um outro ofício
Dar ao tempo uma indústria feraz
Quando os terrenos parecem reflectir o firmamento
Quando a noite convoca nos pátios o estrelato

Lájeas naturais, oblíquas, para nascente
Em madrugadas a bruma nelas dormia
Perto era uma vinha, há muito sem lida
Aos poucos feneceu, havia ali fósseis

Fragmentos residuais vivem muito em fundos
Na confluência das lájeas, minério dourado
Tesouro fabuloso impossível de investir
Nem para uma pouca d’água, um meio-pão

Âmbar? Obsidiana? Como envelhecer assim?
Agora que algo se sabe, agora o corpo desiste?
Agora que algo se aprendeu, o corpo d-existe?
E adianta alguma coisa perguntar tanto?



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