© DA., Sr.
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Domingo,
21 de Março de 2021
Vi anteontem, no autocarro, uma jovem pessoa de narinas crivadas de metal: piercings & arganéus como os dos focinhos dos porcos. O pescoço, sujo de uma tatuagem ilegível. Não sei se teria dezassete anos. Tive pena dela, depois esqueci-a (sabendo de antemão que a deixaria escrita).
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I
Incorrupção de corpos tidos por santos.
O rebanho parece necessitar de contrariedade do real.
O quotidiano comezinho melancoliza os sensíveis.
É um lenitivo, um paliativo, o suposto sobrenatural.
Aqui em Coimbra, temos a Senhora Rainha Santa Isabel.
É um ícone caro ao coração da grei conimbricense.
Fedia a rosas, garantem testemunhos da sua remoção.
Terá morrido, santa já para o povo, em Estremoz.
O meu Pai pintou-a centenas de vezes: rosa feita pão.
Eu vou mais por versos incorruptos, é parecido.
II
Ao Norte gélido em barco-veleiro, foram & tornaram alguns.
Sossegam hoje em livros bem feitos, que mui revisito.
Duros homens, chamados por certa predestinação.
À feroz Natura fizeram frente, nem sempre bem (se) houveram.
Como devassar o Cosmos, procurando saber mais.
Tem o humano algumas qualidades, negá-lo não vou.
Ao solar sul desceu Vincent em puríssima soledade.
Pina tinha gato, biblioteca, lucidez, talento.
Homens, muita grei, uns quantos singulares.
Eu tenho mercearia, uma marquise, espero nada & a ninguém.
III
Ainda assim, existir vai dando para a despesa mínima.
Respira-se, a luz pinta o mundo, vontade & realidade colidem.
Muitas vezes me ocorre a sombra de algum remorso.
Isso amarga-me, desgosta-me a disposição, fico sem graça.
O remédio é palpar as estantes, saborear os títulos.
É tão ilusória a cagança alheia quão a própria.
Ela por ela, antes a própria mesma só minha.
Shackleton foi um valente, dúvida nenhuma.
Certas noites de Verão, a Casa centrava o mundo.
Morta é sua população, há que seguir, fazer despesa.
IV
Há um óbito na minha terra.
É o da Belita, irmã da Lina.
Ambas raparigas da minha criação.
A Lina perdeu o marido no ano passado.
Agora, a irmã – mau tempo.
O meu primo Francelino está doente.
O noticiário vem chegando, imperioso.
Não é que eu o procure.
Ele arranja maneira de chegar-me.
E depois faz-se verso, impertinente.
V
Ontem não, anteontem sim, hoje também: vi o melro.
Gosto de pensar que ele me sobrevoa quando saio.
Quando não saio, ele anda ali pelo bosquete.
É terrivelmente bonito, raio do pássaro.
Ao entardenoitecer ele faz de contra-sombra no céu.
Tinge de tinta-noite o que resta de dia vivo.
Chamo-lhe Abelardo, às vezes. E Trajano.
E Calado. E Regno. Abelardo Trajano Calado Regno.
É nome grave, acho que lhe assenta bem.
Já anoitece, ele funde-se nas trevas, está tudo bem.
VI
Provenho de uma das vielas genealógicas indistintas.
Revisito-a em escrita sempre que se me esfuma o espelho.
Um chão de mortos também pulsa flores, não só pedras ósseas.
Poderosos azulejos me forram interior parede.
Lentidão de maneiras, depurado amor, sentido fino:
nada me falta, apuradas as contas a lápis.
Não nesse rumo do cumprimento individual da estirpe.
Talvez excessivamente tenha eu migrado.
Vida & morte hão-de ser aqui, não longe.
Nem para obras encerra tal viela.
VII
Estranhamo-nos. Tantos anos para nada.
Entre saber & esquecimento, venha o Diabo.
Não há volta a dar-lhe, atrás muito menos.
A luz oxidou a terra, calcinada de sombra.
Não desviarei milagres dos néscios.
Vou sozinho ao festival-das-sopas.
Um homem é um homem, dobro de metade.
Estrangeirámo-nos por livre-alvedrio.
O silêncio grita como a cal no Verão.
Deixá-lo gritar, surdos somos todos já.
VIII
Volta por calendário a Primavera.
O País é bonito, a luz o torna tal.
Soturnas imagens vivem também no real.
Li hoje versos francamente fracos.
(Alguns eram meus, valha a verdade.)
Linha a linha, o domingo é quase findo.
Pipiam luzes fraquitas no veludo negro.
Além, o Mondego sonda a frio o mar.
Água procura água: como pessoa a outra.
Ou não: como pessoa a si só, não sei.
IX
Já habitei a manhã em descuidosa plenitude.
Saúde me não faltava, nem relógios sequer usava.
Contava tudo menos horas, por minha virtude.
Duvide quem quiser: eu cá não duvidava.
Resido onde hoje r-existo, mais dentro mormente.
A gente tem de ser gente, a humana condenada.
Nada nos livra da condição de bicheza-gente.
Plenamente foi que dei a manhã por habitada.
Telefonou-me entretanto a minha Filha Leonor:
d’amor-amor sou eu seguro, ó faz-favor!
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